Quando a Estação Ferroviária da Vila Abajá começou ser construída, ela já estava por lá. Tinha um barraco de um cômodo só, feito de plástico, madeira e papelão, bem no lugar escolhido para abrigar a plataforma do galpão onde as cargas descarregadas seriam guardadas. Final dos anos de 1940, começo dos de 1950. Lá embaixo, perto das quaresmeiras, que no período da quaresma, misturavam a tristeza da cor roxa das suas flores, com a tristeza da miséria da maloca, foi construída a grande caixa d’água, que abasteceria a estação, o galpão e as casas dos funcionários da estrada de ferro, construídas ao mesmo tempo que a caixa d’água, antes do início da construção da Estação e demais dependências.
Depois do meio-dia, ela saía andando pelas ruas de Campinas, com um saco nas costas. Dentro dele as latas de leite em pó onde guardava a comida que ganhava. Era negra, já sem dentes, com dificuldade para falar e tinha um caroço enorme no pescoço – por isto era chamada de Paula Papuda. Andava limpinha. Tomava banho à noite na Lagoinha do Córrego Santa Helena, que ficava entre o local escolhido para a construção da estação e a maloca.
A maloca era habitada por pobres que vieram em busca de oportunidade, 14 anos antes da chegada dos trilhos, em busca de vida melhor, na nova Capital de Goiás, que estava sendo concluída pelo tal Dr. Pedro. Os barracões eram semelhantes ao da Paula Papuda, só que tinham mais cômodos e muita gente.
Baianos então era aos montes. Mas tinha gente de todo o Brasil e de vários municípios goianos.
A oportunidade de vida melhor não veio e as famílias se abrigaram ali, no terreno de terra preta, onde tinha a Lagoinha, o córrego e era vizinho das chácaras da Vila Santa Helena. Tinham água em abundância e podiam trabalhar cuidando das hortas. Gente sofrida, faminta e diariamente a polícia ia lá buscar alguém que roubou alguma coisa. Dois dias depois ele voltava com a cara inchada, olhos roxos e cheio de esfolões pelo corpo.
Numa segunda-feira, Paula Papuda viu a patrola lá perto do barraco. Jogou o saco nas costas e saiu em busca da comida. Dividia a reação das crianças: os mais novos corriam com medo, quando a viam; os mais velhos faziam o que ela mais detestava, berravam: “Paula Papuda, Paula Papuda….” e enquanto ela não parava para chorar, os moleques não quietavam. Gostavam de vê-la chorando. Nunca se soube de uma reação dela contra os moleques e nem da repreensão dos pais para que eles não fizessem aquilo. Era magrinha de dar dó. Naquela segunda-feira estava tão diferente que o xingamento dos moleques não a fez chorar.
Voltou pra casa lá pelas quatro da tarde e aí ela chorou. Chorou o choro mais sofrido da sua vida. A patrola havia passado em cima do seu barraco, deixado o terreno lisinho para a construção do Galpão, que ainda hoje pode ser visto naquele lugar. Não deu nem para tirar os trapos de dormir e os de vestir do monte feito pela patrola. Agora era ela, o resto de comida que havia ganhado na mendicância do dia e nada mais. Não disse nada pra ninguém, apenas chorou. Olhou pro lado e viu a casa de palha, do Arroz Ibiá. Era um cômodo nos fundos da máquina de beneficiar o arroz.
Entre o telhado e o piso tinha um enorme caixote de madeira, com uma portinhola de arrastar para os lados. Os carroceiros afastavam suas carroças lá, abriam a portinhola e enchiam o veículo de palha, para vender para os chacareiros da Santa Helena como adubo. Como não pagavam nada pela palha, tratavam das famílias com aquela renda. Foi lá que Paula Papuda passou a dormir. Só que tinha de esperar o último carroceiro carregar, senão era xingada.
Os trilhos chegaram, onde hoje é a Avenida Leste/Oeste. A pomposa estação logo foi concluída. Sua magnitude era um contraste com a maloca do lado debaixo dos trilhos. O ambiente era muito movimentado: Trem chegando e saindo, gente subindo e descendo, vagões sendo descarregados.
Os troles eram uma atração a mais. Quatro rodas de trem, montadas abaixo de um quadrado de madeira, sem laterais. Por eles os homens da guarda ferroviária iam e vinham. Tinham nas mãos grandes cabos de madeira, enfiavam aquilo na cabeça dos dormentes e provocavam o movimento sobre os trilhos. Até hoje não sei como faziam para parar aquela geringonça. Foram eles, os guardas ferroviários que viram a Paula Papuda tomando banho na Lagoinha, num dia à noite. Já era tarde, estava escuro, mas a luz da locomotiva iluminou um corpo preto se abaixando dentro d’água para se esconder.
Os guardas ferroviários, brabos como eram, foram até lá ver do que se tratava e deram uma surra naquele corpo magro, sem dentes na boca e com olhos fundos. Chamaram a polícia, mas os policiais não quiseram prender a Paula Papuda. Deixaram ela vestir a roupa, lavar o sangue que saia do nariz e a levaram até a casa de palha onde dormia. O Manelão ficou revoltado quando viu aquilo e quis brigar com os guardas da ferrovia, mas o Silvino não deixou.
Foi o Manelão que pediu à dona Ana as roupas velhas dela, da Mariinha e da Marta para dar para a Paula Papuda, e foi a pedido dele que a dona Ana, dona Belinha, dona Cecília, dona Joana e dona Dita passaram a levar comida e água para a Paula Papuda até ela dar conta de andar com o saco com as latas de leite em pó dentro, outra vez. Cada uma das senhoras levava a comida num dos dias da semana. Ela recebia a comida e agradecia. Outras perguntas eram respondidas com o movimento da cabeça, afirmando ou negando. Nos primeiros dias do retorno às andanças estava suja e mal cheirosa, mais magra, o que fazia o papo parecer maior. Mas logo voltou ser vista limpinha. Não se sabe que dia da semana Paula Papuda deixou de ser vista pelas ruas das vilas campineiras.
O primeiro a dar falta dela foi o Carlinho Fumador, um dos moleques que tinham o prazer de ver a Paula chorando. Logo todos viram que a Papuda havia desaparecido. Em poucos dias a água da estação, do galpão e das casas dos funcionários da Estrada de Ferro começou exalar um odor insuportável. A grande caixa d’água construída perto das quaresmeiras tinha uma escada de ferro chumbado na coluna central que dava acesso lá para cima – não era alta e foi por lá que o seu Nicanor subiu para ver o que estava acontecendo. Quase caiu quando olhou dentro da caixa. A Paula Papuda estava morta lá dentro.
Só depois de muito tempo é que o Tião Pinguço, que dormia na calçada da estação contou que desde quando se restabeleceu da surra levada dos guardas ferroviários, todos os dias tarde da noite, Paula Papuda subia na caixa d’água para tomar banho. Além de beber água do corpo da defunta, os guardas ferroviários, carregadores, passageiros, maquinistas e bilheteiros e todo o pessoal que morava nas casas construídas para abrigar os funcionários da estrada de ferro, beberam muitas vezes a água que lavou o corpo da Paula Papuda.
Em meados dos anos de 1960, quando tinha uns sete anos, ouvi pela primeira vez sobre este evento, que ainda continuou sendo contado por alguns anos e depois desapareceu da Vila Abajá, junto com as locomotivas, vagões e troles.
Dedico esta narrativa ao colega Samuel Straioto, pelo amor que ele tem pelas histórias dos trens de ferro.