O recente julgamento do tenente-coronel Davi Dantas, condenado pela morte do ortopedista Marcelo Pacheco, reacendeu um debate recorrente no País: a impunidade policial. O crime praticado por Dantas aconteceu há oito anos e teria sido motivado por ciúmes. O policial, que na época era major, ficou 125 dias preso e, por força de habeas corpus, aguardou o julgamento em liberdade. Durante todo esse período, ele continuou trabalhando nos quadros administrativos da Polícia Militar e chegou a ser promovido de major a tenente-coronel. A justificativa da PM é que o Estatuto dos Policiais Militares de Goiás não dispõe de qualquer artigo que impeça a promoção de militares acusados de crimes contra a vida.
Condenado a 15 anos de prisão, Davi Dantas vai aguardar em liberdade o julgamento do recurso interposto pelos advogados de defesa. O promotor Eudes Leonardo Bom Tempo diz que o status de militar não foi decisivo no desfecho do julgamento, mas que os privilégios dos policias são inegáveis. “Evidentemente, o posto que ele ocupa tem uma certa influência. Por ser militar, ter prisão especial outras situações que a lei dá por ser um representante do Estado, isso, de certa forma, permite um tratamento diferenciado, o que enseja uma revisão e reflexão sobre a legislação.”
Apesar da baixa condenação, o caso de Davi Dantas pode ser considerado um avanço. Goiás coleciona casos em que a violência policial é legitimada em nome da ordem. De acordo com dados da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp), elaborada pelo Ministério da Justiça, Goiás é o segundo estado em impunidade nos casos de violência policial no Brasil. Perde apenas para Minas Gerais no ranking nacional. A estatística é do ano passado e faz parte do relatório anual de atividades da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Assembleia Legislativa. Em 2012, das 94 denúncias recebidas, 21
eram referentes à violência policial.
O jornalismo da Rede Clube de Comunicação levantou dados junto à Secretaria de Segurança Pública, Delegacia de Homicídios, Corregedoria da PM, Ministério Público e Tribunal de Justiça com o propósito de saber se há punição para os “bandidos” que se valem da farda e do revolver para matar, humilhar, intimidar e extorquir.
As denúncias contra militares são investigadas pela corregedoria. Mortes ocorridas durante o trabalho, quando justificados por resistência da vítima, vão para análise da Justiça Militar. Homicídios cometidos contra civis em que o confronto não é comprovado seguem o trâmite dos crimes civis. A Polícia Civil abre o inquérito, repassa ao Ministério Público, que formaliza a denúncia no Tribunal de Justiça. O promotor Milton Marculino explica que os processos geralmente se arrastam por anos, não pelo fato do acusado ser militar, mas porque as leis brasileiras permitem brechas que beneficiam aqueles que podem pagar um bom advogado. “Nossa justiça, no geral, ainda é muito morosa e não há nenhuma vontade para que isso se resolva.”
Na 13ª Vara Criminal, tramitam dez processos de denúncias de homicídios contra militares. Nenhum acusado está preso. Dois foram julgados no ano passado e condenados a mais de 30 anos de prisão por homicídio, porém não foram presos porque estão foragidos. São eles: Dener Rubens de Sousa Freitas e Arlindo José dos Reis. Nilson João Ananinhas, Sérgio Flor do Nascimento, Frederico Rocha Tlaoni e Raimundo Ramos dos Santos, acusados de assassinato, aguardam julgamento em liberdade. Flávio Solto foi beneficiado pela suspensão do processo, pois a Justiça entendeu que houve falhas na investigação e solicitou mais provas. Os números da 13ª Vara Criminal são apenas uma amostra da situação dos policias envolvidos em crime em Goiás.
Alguns casos são emblemáticos dentro desse contexto de impunidade policial. Permanecem livres, por exemplo, os acusados de matar o motociclista Luiz Antônio Ázara, em janeiro de 2006. Segundo denúncia do Ministério Público, Luiz tentou fugir de uma blitz porque estava sem a proteção obrigatória e sem a habilitação. Foi perseguido e morto dentro de casa. O rapaz não tinha antecedentes criminais. Os policiais Brunner Ramos da Silva e Adael Ribeiro foram favorecidos pela suspensão do processo. Já o acusado de atirar no motociclista Wagner Pereira dos Santos foi condenado pelo júri popular, mas a defesa recorreu e ele aguarda o recurso em liberdade.
O Juiz criminalista Jesseir Coelho de Alcântara explica que parágrafo único do artigo 9º do Código Penal Militar acrescido da lei 9.299, de 1.996, dispõe que os crimes, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, são da competência da Justiça Comum. A lei impede o corporativismo no julgamento de PMs envolvidos em homicídios. Porém, Jesseir Alcântara reconhece ser comum o arquivamento de processo ou a redução da pena devido à falta de provas concretas. “A Justiça trabalha em cima de provas; se o juiz e o jurado leigo não têm provas adequadas não há como condenar. A impunidade está na má apuração do fato.” A construção de provas é trabalho da polícia civil.
A reportagem constatou que, geralmente, a impunidade acontece com absolvição do acusado ou arquivamento do processo por causa de inquéritos sem consistência. Há indícios de que a própria PM altera o cenário do crime, eliminado possíveis provas. Um exemplo recente é a morte do cantor sertanejo Boni Júnior. Os delegados que investigaram o caso, Ricardo Chueire e Gustavo Carlos Ferreira, afirmam que o laudo técnico e a reconstituição do crime apontaram que os próprios militares plantaram arma na cena do crime, atiraram contra a viatura, numa tentativa de forjar um confronto e justificar o assassinato.
Há também casos em que a violência é legitimada para manter a ordem e o respeito à hierarquia militar. A defesa do soldado Rafael Bessa, condenado pela morte do estudante Diogo Ranhel Alves, tentou desqualificar o crime alegando que o disparo foi acidental, uma vez que o militar tentou atitar no pneu da motocicleta para evitar a fuga dos jovem que não tinha habilitação e teria feito menção de driblar a blitz da polícia.
O sociólogo Arthur Trindade, professor da UnB, acredita que a brutalização da PM vem do contexto histórico do país. Segundo ele, após 25 anos de ditadura, as barbáries cometidas pelo regime militar continuam impunes. “A polícia brasileira foi constituída dentro de um contexto histórico e social. Essa configuração não é casual e tende a piorar se não acontecer uma mudança de conceito na formação do militar.”
Na Corregedoria da PM, os dados sobre denúncias contra militares datam dos últimos três anos. O corregedor, coronel Lorival Camargo, justifica que os números anteriores a 2011 se perderam com o tempo e que não há efetivo suficiente para organizar um banco de dados atualizado. “Eu assumi aqui há quase quatro anos e não tinha controle nenhum. Desde agosto de 2011 nós informatizamos o sistema que permite um pequeno controle, mesmo assim eu ainda tenho muita dificuldade porque estamos com problema de efetivo. Eu diria que nós estamos vivendo numa calamidade.”
Os dados da Corregedoria mostram uma redução no número de sindicâncias abertas para apurar desvio de conduta e inquéritos de crimes contra a vida, como tortura e homicídios. Em 1999, a Câmara de Vereadores de Goiânia divulgou relatório com números de assassinatos possivelmente praticados por militares. Segundo o levantamento, entre 1994 e 1999, 159 pessoas foram mortas pelas mãos da polícia. O relatório, que apontou que os policiais justificaram os homicídios pela própria negligência, imprudência e despreparo, faz parte de levantamento feito pelo advogado criminalista Alan Hahnemann Ferreira para defesa de sua tese de mestrado.
O Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros organizando pelo Instituto Sangari a partir de dados do Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça – publicado em 2008 – revela que os anos seguintes a 1999 também foram sangrentos. Naquela época, Goiás figurava entre os sete estados em que mais ocorreram homicídios cometidos por policiais do Brasil. Em um período de pouco mais de dois anos, foram registrados na região metropolitana de Goiânia 117 assassinatos com autorias atribuídas a PMs. Entre 2003 e 2009, o Estado de Goiás apresentava aumento no número de crimes cometidos por militares e poucas punições.
Na dissertação, Alan Hahnemann expõe a dificuldade em conseguir informações dentro da corporação da PM e na própria Secretaria de Segurança Pública, que para ele, maquia a realidade. “A primeira conclusão é que os dados da SSP não representam dados reais porque eles não trazem a totalidade; só registram os crimes em que não houve resistência por parte da vítima. Em 2006, do total de homicídios em Goiás, 12% foram praticados por militares.”
A ação da PM goiana contra civis ficou internacionalmente conhecida em 2005, ano em que dois trabalhadores foram assassinados e centenas de sem-teto, entre eles, idosos, mulheres e crianças, teriam sido agredidos pela polícia na desocupação de um terreno no Parque Oeste Industrial. Até hoje, ninguém foi julgado. Nos anos seguintes, surgiram denúncias de desaparecimento de pessoas após abordagens policiais feitas pela Rotam. As investigações estão paradas.
A mãe de uma das vítimas, o adolescente Murilo Soares, desaparecido há oito anos depois de uma abordagem policial, Maria das Graças, vive a espera de noticias e nunca se desfez das coisas do filho, que teria hoje 20 anos. “Eu tenho as coisas dele aqui em casa, eu tenho o quarto dele, as roupas guardadas, nunca tive coragem de doar nada, o quarto dele está aqui intocável.” Seis militares foram indiciados pela autoria, todavia, em outubro do mesmo ano, foram absolvidos por falta de provas. Um dos suspeitos, o cabo Marcelo Alessandro Capinan, de 42 anos, foi executado este mês num possível acerto de contas.
São comuns os episódios em que o policial usa a farda e o revolver para intimidar, num claro abuso de poder. No mês passado, um policial da Rotam se irritou com o barulho do som durante uma festa de casamento. Protegido pela arma da corporação, foi ao vizinho reclamar e atirou várias vezes, matando um jovem de 22 anos e ferindo duas pessoas.
Em 2006, o promotor Rodaney Ferreira Gandra se envolveu em uma briga de trânsito com o motociclista Marcos Antônio Maciel Lemos e chamou o filho, o policial militar Leonardo Gandra, que, mesmo em serviço, foi ao socorro do pai. A ocorrência já havia sido registrada pela polícia, mesmo assim Leonardo algemou Marcos Antônio. Segundo denúncia do Ministério Público, sem esboçar agressividade, o motociclista tentou correr e foi baleado nas duas pernas. O militar foi condenado por lesão corporal e excluído da corporação.
Cansados de esperar por justiça, famílias de vitimas da agressão policial fundaram o Comitê Goiano pelo Fim da Violência Policial. Desde 2006, o grupo se mobiliza para não deixar que os crimes sejam esquecidos pela sociedade e pela Justiça. A coordenadora do Comitê, Ironides do Nascimento, perdeu o marido assassinado na desocupação do POI e diz que o movimento foi criado para enfrentar a impunidade legitimada pelo poder público. “Nós criamos para unir esforços e denunciar as graves violações dos direitos humanos praticados por integrantes da policia em Goiás. Muitos tinham medo, então surgiu a ideia de fortalecer essa luta.”
A impunidade começou a perder forças no dia 15 de fevereiro de 2011, quando os crimes cometidos por vários militares, alguns do alto comando da PM foram expostas pela Polícia Federal, na operação denominada Sexto Mandamento – não matarás. Dezenove policiais militares foram presos e passaram a ser investigados por formação de grupo de extermínio. Entre os acusados, o ex-subcomandante geral da PM, o coronel Carlos Cézar Macário. Na época, 17 deles foram transferidos para um presidio federal de segurança máxima em Mato Grosso do Sul. A decisão colocava em xeque a falta de estrutura do Batalhão Anhanguera, o presídio militar.
A PF constatou diversas facilidades e regalias concedidas aos militares presos. Apesar do barulho, meses depois a justiça permitiu que os acusados voltassem para Goiás. Dois anos depois, apenas um sargento continua preso porque já respondia por outros crimes. Cinco foram absolvidos por falta de provas e 13 aguardam julgamento em liberdade. Todos continuam fazendo uso da farda, lamenta o deputado estadual Mauro Rubem (PT), presidente da Comissão dos Direitos Humanos na Assembleia Legislativa. “Isso é muito sério porque mostra a fragilidade e muitas vezes a conivência dos poderes que deveriam regularmente cumprir o papel do controle externo da polícia. Isso deixa, não só a sociedade desprotegida, como a própria corporação da segurança pública altamente fragilizada.”
Muitos dos crimes atribuídos aos militares reforçam a falta de preparo dos integrantes de uma instituição que, em tese, existe para proteger a população. Os desvios de condutas, a truculência e a imperícia de parte da corporação exigem uma reflexão neste momento em que as prefeituras da capital e de Aparecida de Goiânia tentam regularizar o porte de arma para a Guarda Municipal. Outro ponto que merece atenção é a inciativa recente do governo de contratar ex-reservistas com até 25 anos para reforçar o efetivo da PM. Para o deputado Mauro Rubem, um ato de irresponsabilidade. “Agora o governo vai cometer um erro e nós estamos preparando uma ação judicial para não permitir a contração policial militar temporário, isso é grave, isso é gravíssimo.”