Semiaberto é o nome dado ao regime de cumprimento de pena privativa de liberdade, normatizado pelo Código Penal. É também a modalidade de prisão que sofre debandada, todo mês, de 50 presos no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. A Agência Goiana do Sistema de Execução Penal (Agsep) não fala em fuga, mas na “evasão” de 799 detentos em 2012 e nos quatro primeiros meses deste ano.
O semiaberto é indicado para não reincidentes que pegaram mais que quatro e menos que oito anos, mas pode-se chegar a ele pela porta da progressão de regime. Na teoria, quem paga a pena com ele trabalha em colônia agrícola ou industrial. A prática, entretanto, não ratifica a determinação legal.
Contra o descompasso, uma comissão especial de sete juristas brasileiros proporá atualizações na Lei de Execução Penal (LEP). O colegiado, instituído pelo Senado, é parte de um movimento imbuído de ajudar na atualização do Código Penal. Já houve três reuniões desde abril, a próxima acontecerá nesta sexta-feira (10).
Edemundo Dias de Oliveira Filho, presidente da Agsep, é o único representante goiano a participar das discussões. Sua proposta perante os seis colegas é de recrudescimento da lei. “Esse sistema prisional brasileiro não funciona, ele é um incentivador da impunidade e da criminalidade. Depois de cumprir um sexto da pena, o preso já sai do fechado para o semiaberto”, argumenta. “Não há para a consciência do próprio infrator nem para o inconsciente coletivo da sociedade a sensação de punição.”
Com olhos de quem coordena um sistema falho, Edemundo reconhece a falta de fiscalização como impedimento para que a aplicação do semiaberto saia conforme dita a LEP. “É difícil a fiscalização. Só pela LEP, quem está no semiaberto tem cinco saídas anuais, de uma semana. Se apresentar carta de emprego, sai de dia e volta à noite. Corre o risco de, nesse período, ele cometer novos delitos.”
O não retorno às dependências do presídio assemelha-se, mas não confere com a situação exata de fuga. “Há evasão, não fuga. Ele deixa de cumprir a pena”, sintetiza o presidente da Agsep, para quem a lei que rege o semiaberto é boa, mas não é seguida. Deste modo, “o Estado passa a ser infrator”. Impopular aos membros da comissão que discute a Lei de Execução Penal, o posicionamento de Edemundo Dias diante do regime que é meio-termo entre o fechado e o aberto é direto: “ou o semiaberto funciona bem ou é preferível que ele seja extinto”.
Intermediário
Titular da Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas em Goiânia, o juiz Wilson Dias apresenta a causa do mau funcionamento do semiaberto. “Ele não é satisfatório por causa (da falta) de investimento do Poder Executivo. Falta estabelecimento prisional para o cumprimento da pena”, afirma Dias, recuperando que a lei fala em colônia agrícola, industrial ou similar para execução da pena no semiaberto.
O juiz acredita que sustar o regime não convém, já que ele atua como intermediário. “O Judiciário entende que o semiaberto precisa existir, porque é um regime intermediário. Determinados condenados não deveriam ser incluídos num regime fechado de imediato e outros não podem sair direto do fechado para a liberdade total.”
Se há fuga (ou evasão, a quem prefira), não há vigilância. A presença da primeira acusa a falta da segunda, de acordo com o titular da Vara de Execução de Penas. Ele critica a ideia de endurecimento defendida por Edemundo. “Qual o semiaberto que nós temos em Goiânia? Dois galpões no Complexo Prisional, onde as pessoas ficam recolhidas em celas. Qual a política direcionada a elas? Nenhuma? Antes de rever leis, nós temos que ver condutas, investimentos, porque a nossa Lei de Execução Penal é uma das mais avançadas do Brasil”, conclui.
Olhar de dentro
O diretor de Segurança Prisional da Agsep, João Carvalho Coutinho Júnior, reproduz a visão do presidente da Agência, Edemundo Dias. O olhar de quem vive a realidade do Complexo Prisional fica encarcerado na desesperança de que do regime semiaberto atenda à sociedade no intuito de protegê-la. Por operarem o sistema de execução penal com os instrumentos de que dispõe o poder público, a estrutura faltosa é compatível com a inanição dos resultados na segurança pública, exposta à reincidência dos que, ao deixar de cumprir a pena, não raro cumprem com os mesmos delitos fora da cadeia.
Na Agsep, tanto o presidente quanto o diretor de Segurança reconhecem que há o retorno ao crime por parte de um “índice grande” de detentos que congela o pagamento da pena por causa da evasão/fuga, porém não existe controle numérico de quantos reincidem, quantos são recapturados, qual seria a população de presos caso não houvesse a debandada do semiaberto antes do fim do cumprimento e, por inusitado que pareça, o diretor de segurança não tem ideia exata de quantos cumprem pena no semiaberto do Complexo Prisional – o que existe é a projeção de que cerca de 500 presos povoem o espaço: que não é colônia agrícola, industrial, nem similar, como determina a LEP.
“Ele (o regime semiaberto) não está sendo cumprido como a lei manda, e como a lei manda eu acho pouco eficaz. Em minha opinião, deveriam extingui-lo, aumentar o fechado e dali vai para o aberto ou para uma condicional”, propõe João Carvalho.
João não exclui a culpa cabível ao Estado, mas lhe atribui somente parcela. “Não é que a fiscalização seja ruim, às vezes as regalias é que são muitas. Nós temos que melhorar esse critério pra soltar essa pessoa para um trabalho externo. O juiz tem que ser avaliado nessa situação, principalmente no critério de lapso temporal” – que permite a obtenção de emprego após um sexto de pena ser cumprido, mediante declaração formal da empresa que solicita os serviços do preso. “Eu acho que a culpa não é só do Estado, mas do legislador. A lei é muito garantista e exige pouco do preso.”
Olhar de fora
Pedro Paulo de Medeiros, da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás (OAB-GO), concorda com um ponto defendido por Edemundo Dias, o de que tornozeleiras ou pulseiras eletrônicas talvez fossem solução viável ao monitoramento do detento quando estivesse fora das dependências carcerárias. Acaba aí, no entanto, a convergência. Para o jurista (que compôs comissão destacada anteriormente pelo Senado a fim de propor mudanças no Código Penal), “a previsão do semiaberto como está na lei não exige retoques”. A Pedro Paulo, o trabalho dos presos parece ser uma tentativa de ressocialização.
“A lei é boa, mas na prática ela tem funcionado? Não. E aí, nesse ponto, eu tenho que concordar com quem é contra. Mas por que não funciona, vamos tirar a lei?” Em vez disso, o jurista prevê alternativas (como o monitoramento eletrônico). Ele critica as palavras do diretor de segurança da Agsep, que fala sobre ser muito garantista a LEP. “Muito garantista? Quem diz ‘muito’ tem algum parâmetro. O meu é o regime militar.
Para o ferreiro, o mundo é feito de ferro, e para quem está na Agência Prisional, o mundo é feito de prisão. Quando diz direito demais, (o diretor) deve ter dito que todo mundo tem que ficar preso o tempo inteiro, e retruca o ponto de vista de João Carvalho dizendo que “política criminal é muito mais que direito penal”. “Eu não desconheço que há reincidência. O sistema penal não faz o papel dele. O Brasil não tem emprego para todo mundo, muito menos para detento. Mas o que deveria acontecer é (o Estado) ir ressocializando (o preso). Política criminal vai muito além do que prender ou soltar. Você não vai prender alguém perpetuamente, no Brasil não tem (prisão perpétua).”
Por fim, Pedro Paulo de Medeiros acusa o Estado pelos crimes reincidentes dos presos que abandonam o cumprimento da pena do semiaberto. “Se ele reincidiu, quem errou foi o Estado que permitiu que ele progredisse (para esse regime)”.