Com mais de 97 milhões de acessos em 71 países, a série Adolescência, da Netflix, vem chamando atenção ao escancarar os perigos da internet para o público jovem. A produção tem causado comoção ao abordar, com profundidade, os efeitos do ambiente digital na formação de crianças e adolescentes — e levantado questionamentos urgentes sobre o papel da sociedade na proteção desses usuários.
Na edição desta quarta-feira (9) do programa Educação em Pauta do Sistema Sagres, o juiz André Lacerda, titular da 5ª Vara da Fazenda Pública Municipal de Goiânia, debateu com as jornalistas Laila Melo, Jéssica Dias e Jéssica Lima o impacto da série e o cenário atual do uso de tecnologias por menores de idade.
Lacerda, que atuou por 15 anos na Vara da Infância e Juventude, afirmou que tem participado de rodas de conversa com profissionais da educação e do sistema de justiça sobre os temas abordados na série. “A princípio, eu nem conhecia a série. Um amigo diretor de escola me chamou para um debate e eu topei. Quando assisti, vi o quanto ela é impactante. Tenho filhos pequenos, então a gente se enxerga ali”, contou o magistrado.
De acordo com ele, o que mais chama atenção não é o crime em si, mas todo o contexto de exposição e influência digital. “A série não tem o objetivo de mostrar a violência em si. O crime aparece em 10 segundos. O que ela escancara é o que esses jovens estão acessando sem supervisão e como isso impacta diretamente no comportamento deles.”
Enredo da série
A trama acompanha um garoto de 13 anos que comete um crime bárbaro — um caso fictício, mas que se assemelha a muitos vivenciados no mundo real. A narrativa, gravada em plano contínuo, insere o espectador na rotina da família, construindo aos poucos a tensão. “Você olha para a criança e pensa: não é possível que ela tenha feito isso. E é isso que choca”, reflete o especialista.
Um dos momentos mais discutidos no programa foi a fala da mãe do personagem principal, que acreditava que o filho estava seguro por estar em casa, trancado no quarto. A realidade, porém, é outra. “Com certeza não estão seguros”, afirmou Lacerda. Para ilustrar esse paradoxo, Lacerda citou o livro A Geração Ansiosa, do psicólogo social Jonathan Haidt.
“Ele propõe uma analogia impactante: você deixaria sua filha de 10 anos participar de uma missão para colonizar Marte, com todos os riscos envolvidos? Claro que não. Mas, na prática, é isso que acontece quando nossos filhos acessam redes sociais sem nossa supervisão. A diferença é que, para ir a Marte, basta clicar em ‘Aceito os termos e condições’. E quem clica não somos nós, são eles.”
A influência invisível dos algoritmos
Outro ponto abordado foi a forma como interações aparentemente inofensivas — como curtidas, emojis e compartilhamentos — podem carregar significados ocultos entre os adolescentes. “Até aquilo que parece inocente tem outro significado nesse universo”, alertou o juiz. “Um emoji pode ser um código de discurso de ódio, de misoginia. E os pais, muitas vezes, nem desconfiam.”
De acordo com os debatedores, esse novo cenário impõe à sociedade o desafio de discutir a educação midiática como parte essencial da formação dos jovens. A mobilização internacional em torno da série também foi lembrada no programa.
No Reino Unido, o primeiro-ministro convidou os criadores da produção para incentivar a exibição da série nas escolas, com o objetivo de alertar pais e alunos. Enquanto isso, no Brasil, a recente legislação que restringe o uso de celulares em sala de aula é vista como uma tentativa de recuperar o foco dos estudantes.
“Mas isso é o mínimo”, ressalta Lacerda. “O problema é muito mais profundo e está na base da nossa relação com a tecnologia.”
Proibição de celulares nas escolas
Para Lacerda, a medida é um passo importante — mas insuficiente frente à complexidade do problema. De acordo com, as redes sociais foram construídas com algoritmos capazes de viciar. “Elas produzem efeito de dopamina, são programadas para manter crianças conectadas o maior tempo possível. O cérebro ainda em formação é a vítima perfeita. As empresas sabem disso, mas o que pesa é o custo-benefício: quanto mais tempo, mais lucro”, critica.
Apesar de reconhecer a excelência de legislações como o Estatuto da Criança e do Adolescente, André afirma que o problema está na implementação: “Temos boas leis, mas não temos uma cultura que garanta acesso efetivo à educação, lazer, esporte, alimentação. As crianças continuam desamparadas.”
A discussão, no entanto, vai além do campo jurídico. Ela alcança as salas de estar, onde pais tentam, muitas vezes sozinhos, enfrentar um sistema que ultrapassa a autoridade doméstica. “Você não vai conseguir estirpar o celular da vida da criança. Elas cresceram com isso. O que precisamos é ensinar o uso consciente. Mas, para isso, os pais também precisam estar presentes. E esse é outro problema.”
Ele compartilha uma experiência pessoal: “Meu filho quebrou o celular e não teve outro. Só terá quando eu achar que ele tem maturidade para usar. Eles pegam os nossos aparelhos, usam o computador. Por isso, uso apps que monitoram. Não é invasão de privacidade. Até os 18 anos, os pais respondem por eles.”
Educação sexual e mental
A necessidade de orientação vai além da questão tecnológica. Para o juiz, temas como educação sexual e saúde mental também devem ser tratados com franqueza e responsabilidade nas escolas. “Existe um tabu que impede qualquer discussão sobre sexualidade, mas o que acontece é que sem informação, as crianças ficam vulneráveis. Já vi meninas de 13 anos com filhos, cuidando sozinhas, porque faltou orientação.”
A série discutida na entrevista ilustra com contundência os riscos do confinamento digital. Começa e termina no quarto de um adolescente — lugar que deveria ser seguro, mas que, na prática, se torna palco da tragédia. “A gente superprotege. Temos medo da rua, da violência, e então deixamos eles trancados em casa. Mas isso não é proteção real. Lá dentro há pedofilia, cyberbullying, deep web. A ilusão de segurança é perigosa.”
Além disso, o juiz faz uma analogia: “É como droga. Depois que começa, o caminho pode ser sem volta. Não adianta chorar depois. A prevenção tem que ser antes. E isso exige diálogo, acompanhamento e, principalmente, tempo — coisa que muitos pais, infelizmente, não têm.”
Mudança no perfil
O cenário atual também mostra uma mudança no perfil dos adolescentes que cometem atos infracionais. “Antes, a maioria vinha de contextos de vulnerabilidade social. Hoje, temos adolescentes de famílias estruturadas, com acesso à educação e recursos, também envolvidos. A tecnologia não discrimina”, reflete Jéssica Dias.
Ao ser questionado sobre os impactos dos games e conteúdos violentos, ele pondera: “Não é porque jogou videogame que vai matar alguém. Isso é simplista. Mas claro que influencia. Potencializa comportamentos que já existem. E é por isso que o acompanhamento adulto é tão essencial”, afirmou Lacerda.
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 04 – Educação de Qualidade
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