Ninguém dos indiciados civil e criminalmente foi responsabilizado pela fraude que desviou recursos públicos do Hospital Araújo Jorge. O Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Estado de Goiás (MP), deflagrou a Operação Biópsia no dia 7 de fevereiro de 2012. O MP investigou por seis meses irregularidades na gestão da entidade filantrópica, descrita pelo Ministério da Saúde como Centro de Alta Complexidade em Oncologia (CACON) com serviço de oncologia pediátrica.
Com a operação, oito prisões temporárias foram cumpridas, dentre elas a da então presidente da Associação de Combate ao Câncer em Goiás (ACCG), Criseide Castro Dourado – que por decisão do Tribunal de Justiça (TJ-GO), “ricocheteou” na cadeia, em tempo bem inferior ao prazo médio de espera de pacientes que procuram cirurgia no Araújo Jorge e, apenas para receber consulta, aguardam 30 dias; isto é, no caso de morarem em Goiânia.
Criseide é portadora de famigerado currículo. Sócia do Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), ela foi condenada pelo abandono da cápsula de Césio 137 que nos anos 1980 provocou fatalidade histórica. A ação penal que envolve o nome dessa e de mais três, a passos lentos, “corre” em sigilo na Justiça. Antônio Afonso Ferreira e Clécio Paulo Carneiro foram gerente financeiro e tesoureiro da ACCG, respectivamente. Ex-secretário de Saúde de Goiânia, Paulo Rassi completa o grupo do processo.
Quanto à ação criminal – cuja sentença proferida pelo juiz Enyon Fleury de Lemos, em novembro do ano passado, absolveu sumariamente quatro dos 12 indiciados –, está marcada para 19 de agosto a audiência de instrução e julgamento dos oito suspeitos de participação em esquema de desvio de recursos no Hospital Araújo Jorge. São eles: Alessandro Leonardo Álvares Magalhães (peculato), Amarildo Cunha Brito (formação de quadrilha e peculato), Élio José Ferreira Júnior (falsificação de documento particular, formação de quadrilha e peculato), Leonardo Sousa Rezende (peculato), Marcelo Rodrigues Gomes (formação de quadrilha e peculato), Milton Lopes de Souza (falsificação de documento particular, formação de quadrilha e peculato), Rafael José Lemos Filho (formação de quadrilha e peculato) e Rubens Rênio da Silva (formação de quadrilha e peculato).
A assessoria do Tribunal de Justiça não soube informar do processo supracitado porque consta “movimentação cancelada” na parte do sistema que deveria informar seu andamento. Há ainda ação civil pública na 1ª Vara da Fazenda Pública de Goiânia, em que a última atualização foi feita em 4 de junho.
Pintar e bordar
O primeiro dos arrolados anteriormente, Alessandro Leonardo Álvares Magalhães, foi denunciado no começo do ano pelo Portal 730. Na matéria “Faltam médicos, sobram assessores”, Alessandro aparece como médico contratado para atender, por 40 horas semanais, na unidade de Saúde do Programa de Saúde da Família (PSF) do Conjunto Mabel, em Aparecida de Goiânia.
Da teoria do PSF à prática do acúmulo de funções, o médico assessorava o secretário de Saúde do município, Paulo Rassi, e chegou a tornar-se secretário interino em Aparecida.
Amarildo Cunha Brito apresenta-se em redes sociais como ex-administrador do Hospital Araújo Jorge e atual gerente comercial de uma empresa do segmento de limpeza. Leonardo Sousa Rezende é CEO do Grupo Milênio. O ex-gerente financeiro da ACCG, Antônio Afonso Ferreira, preside em Goiânia o Sindicato dos Trabalhadores de Saúde, e o ex-tesoureiro Clécio Paulo Carneiro dá nome a assessoria contábil e fiscal própria.
Maligno
A falta de resultados da Operação Biópsia castiga o Hospital Araújo Jorge e – efeito em cascata – quem precisa dele. O superintendente da Associação de Combate ao Câncer em Goiás (ACCG), Hernani Vaz Kruger, comemora a redução do passivo da instituição em R$ 12 milhões, desde que interveio a nova diretoria, há um ano e meio. Mas a dívida da entidade gira em torno dos R$ 64 milhões. Para ter-se clarividência do rombo, dentro de parâmetros financeiros da oncologia no Sistema Único de Saúde (SUS), o valor supera em R$ 13,5 milhões o repasse feito pelo Ministério da Saúde ao Estado de Goiás em 2012 para pagar 281.368 procedimentos cirúrgicos, de quimioterapia e de radioterapia.
A Justiça não deu pistas de quanto é e para onde foi o dinheiro desviado. Logo, não há garantias de que retorne. Se houve desvios, há culpados. Se estão soltos, intocáveis por sentença condenatória, usufruem a seu bel-prazer do montante subtraído de medicamentos que não deram o ar da graça a quem precisava de tratamento oncológico no Hospital Araújo Jorge. Toda sorte de fraude denunciada (supersalários, autocontratação, compra de remédios não entregues, uso de notas frias, nepotismo e – não obstante o farto rol – etc.) compôs o cenário depauperado por que atravessou o Araújo Jorge sob o jugo da presidência de Criseide, que, note-se, traz no radical do nome a palavra ‘crise’.
SOS SUS
O Araújo Jorge oferece um dos cinco serviços oncológicos do Estado pela rede pública, sendo o mais complexo. Em Goiânia, é o único onde funciona radioterapia. O hospital atende 80% da demanda via SUS. Num comparativo, o Hospital das Clínicas fez 3.259 procedimentos para pacientes com câncer entre início de 2012 e início de agosto de 2013. Enquanto isso, só no ano passado o Araújo Jorge fez 851 mil e tem expectativa de chegar a 1 milhão de procedimentos ao final de 2013. É preciso salientar que o mesmo paciente pode demandar mais de um dos atendimentos enumerados.
O tempo não para no Araújo Jorge. Se para, há prejuízos vitais em questão. Na segunda quinzena do mês de julho, um acelerador linear estragou – um de três equipamentos iguais que movem a engrenagem do setor radioterápico do único hospital de Goiânia a oferecer a modalidade do tratamento pelo SUS (fora da capital, só encontrada no Hospital Evangélico de Anápolis). A máquina danificada possui 26 anos de uso e, enquanto aguardava peças adquiridas no exterior, importadas dos Estados Unidos, deixou de servir a 80 dos 350 pacientes que buscam, por dia, radioterapia no Araújo Jorge.
Os três aceleradores lineares funcionam em regime de escravidão: de 7h às 3h; quase 20 horas ininterruptas. Nada mal o desempenho do equipamento – já consertado – instalado em outubro de 1987. O hospital conta com dois aparelhos novos, fruto de convênio com o Ministério da Saúde, mas aguarda captação de recursos para construir os “bunkers” que os abrigarão (o estrangeirismo é nome que se dá ao espaço adequado para instalar o acelerador).
O superintendente da ACCG, Hernani Vaz, garante que a instituição está se recuperando do tumor administrativo que adoeceu a entidade. “A gente conseguiu baixar os juros. Estamos pagando em dia o parcelamento dos débitos junto à Receita Federal, em melhores condições. Também foi quitado o débito com os médicos, que estava em atraso, e também parte do débito com os fornecedores”. Se o Araújo Jorge vai ter de volta o dinheiro roubado do tratamento, ele não sabe. “A Justiça é que vai determinar essa possibilidade”, comenta desentendido.
Justiça seja feita, os responsáveis pela fraude no Araújo Jorge são responsáveis por quantas das 950 mortes de pacientes do hospital só no ano passado? Houve efeito cumulativo sobre os 521 registros de óbito do primeiro semestre deste ano? Qual condenação merece os que não pesaram o valor da vida para aqueles casos em que a medicação faltosa era decisiva?
A Justiça tarda, o câncer não.