Goiás registrou em 2011, 2012 e nos três primeiros meses desse ano, 1.797 homicídios culposos (quando não há intenção de matar) no trânsito. Nesse mesmo período, somado ainda ao ano de 2010, só na capital, 721 processos relacionados a esse crime deram entrada na Justiça goiana de primeiro grau. Ou seja, apenas 38% desses homicídios de trânsito são tratados como crime. Portanto, a pergunta que fica é: quantos homicidas do volante cumprem pena atrás das grades no Estado? Bem poucos, com certeza, diante dos números alarmantes de vítimas expostas à barbárie do trânsito.

O Tribunal de Justiça não possui atualmente estatística oficial sobre condenações relacionadas a crimes de trânsito, mas a Rede Clube de Comunicação conseguiu levantar dados com a 12ª Vara Criminal de Goiânia (Detenção e Crimes de Trânsito) e de casos polêmicos que foram divulgados pela imprensa com o objetivo de saber se os responsáveis por delitos no trânsito estão recolhidos ao cárcere.

Na 12º Vara Criminal de Goiânia, por exemplo, constam apenas cinco julgamentos seguidos de condenação. Porém, desse número, somente uma pessoa cumpre pena na Penitenciária Coronel Odenir Guimarães (POG), em Aparecida de Goiânia, em virtude de outro processo. Ou seja, o responsável pelo delito só está cumprindo a pena atrás das grades porque ele já possuía antecedente criminal e não porque cometeu homicídio no trânsito.

Nas outras varas criminais (de crimes dolosos contra a vida e reclusão) não existe oficialmente um número exato de quantos crimes de trânsito tiveram como desfecho o julgamento seguido de condenação. A ausência de um levantamento mais preciso é explicada pelas discussões jurídicas sobre a pena a ser aplicada ao infrator.

Antes, a morte no trânsito era tratada unicamente como homicídio culposo, ou seja, quando o acidente foi provocado por descuido, imperícia, imprudência, ou que o motorista não tenha previsto o risco. Na maioria dos casos, mesmo dirigindo embriagado ou em alta velocidade, o infrator corria o risco de pegar somente a pena máxima de quatro anos, que ainda poderia ser convertida em serviços prestados à comunidade.

Nos últimos anos tem ganhado força entre juristas que casos de acidentes de trânsito com vítima se enquadram no dolo eventual ou homicídio doloso (quando houve intenção de matar). Por esse motivo que não é possível precisar o número de condenações, já que os processos desse tipo de crime que chegam à Justiça são distribuídos automaticamente às varas competentes e não somente à 12ª Vara Criminal.

Ainda assim, os 721 processos citados no início da matéria são relacionados apenas a homicídio culposo. Somente a partir do momento que o processo chega à vara criminal é que é possível saber se o juiz responsável apontará o acusado por dolo eventual e o mandará ao julgamento pelo júri popular.

“Ultimamente tem chegado ao Poder Judiciário alguns casos que são denominados de dolo eventual por acidente de trânsito. Significa que às vezes o motorista dirige o veículo embriagado, em alta velocidade, com falha técnica e ele tinha conhecimento prévio. Esses casos chegam aqui por dolo eventual e são levados a julgamento por júri popular. Em caso de uma condenação oportuna por parte do conselho de sentença, a pena é muito mais alta que homicídio culposo”, explica o juiz Jesseir Coelho de Alcântara, da 1ª Vara Criminal de Goiânia.

Enquanto a pena para homicídio culposo de trânsito é de 2 a 4 anos de prisão, no homicídio doloso, o infrator pode pegar de 6 a 20 anos de reclusão. Em caso uma condenação no júri popular por homicídio qualificado, a pena mínima é de 12 a 30 anos de reclusão. “Isso significa que a pena aumenta bastante. Nós já tivemos casos aqui no Tribunal do Júri em que a pena chegou a 22 anos de reclusão em regime fechado. Uma pena extremamente alta para um caso como esse”, explicou Jesseir.João Victor

O juiz cita o julgamento de João Cambraia, condenado a 22 anos e seis meses de reclusão em 2010, pelo júri popular. Ele foi acusado de homicídio em acidente de trânsito contra um menino de apenas 3 anos de idade e de ferir gravemente o pai e outra criança de 5 anos. João dirigia alcoolizado.

Casos
Apesar de Jesseir assegurar que tramitam, pelo menos em sua vara, diversos casos de homicídio por dolo eventual no trânsito – inclusive com pessoas aguardando o julgamento presas -, a sensação de impunidade ainda tira o sono de muitas famílias das vítimas. A cama vazia, os brinquedos guardados e as roupas limpas e passadas permanecem intactas no quarto do menino João Victor Lima Rodrigues, que morreu aos 6 anos em fevereiro desse ano. Ele foi atingido na porta de casa, localizada no Setor  Comendador Walmor, em Aparecida de Goiânia, pelo motorista Adão Rodrigues da Silva, 36 anos, que estava embriagado e possuía apenas habilitação para dirigir motocicletas.

O infrator  – que segundo a família do menino não foi capaz nem de pedir desculpas pelo ato -, foi solto depois de pagar uma fiança de R$ 10 mil. A tia do menino, Vanúsia Silva de Lima, 30 anos, conta que a família ficou sem chão após a morte de João Victor. “Minha irmã (mãe do menino) às vezes fala que João Victor foi viajar e vai voltar. Ela chora o tempo todo, não a vejo mais sorrindo, ficamos sem chão. A alegria da casa foi embora”, disse. João Victor era filho único. O processo já deu entrada na Justiça como homicídio culposo no trânsito e Vanúsia explica que a família está fazendo vaquinha para poder contratar um advogado.

TiagoJá a família da bibliotecária Célia Cristina Alves Mendonça Nogueira luta há 3 anos na Justiça para que o responsável por ceifar a vida de seu filho, Tiago, que na época tinha apenas 18 anos, seja julgado e condenado por homicídio doloso. Célia, o marido e Tiago ultrapassavam um cruzamento no sinal verde, próximo ao Setor Campinas, quando Rulfo Cabrini avançou o sinal vermelho, em alta velocidade e embriagado, atingido o carro que a família estava.

O infrator nunca chegou a ficar atrás das grades e, segundo Célia, já chegou a dizer à época para sua família que “apostava que isso não daria em nada”. Passados 3 anos, a bibliotecária teme que o crime prescreva. “O meu medo é o crime prescrever porque já se passaram 3 anos e nada foi feito. É tudo muito burocrático, tudo muito difícil. Nós temos esse desejo muito forte por Justiça”. Enquanto o infrator não é punido, Célia e sua família são obrigadas a conviver com as feridas abertas causadas pelo acidente.

Promotor MaurícioLegislação é 8 ou 80
O promotor de Justiça com atuação na 2º Vara do Tribunal do Júri de Goiânia, Maurício Gonçalves de Camargo, avalia que a situação já foi até pior. “De uns tempos pra cá, promotores de Justiça estão trabalhando mais com o dolo eventual. Muitos casos que antes eram tidos apenas como mais um homicídio culposo no trânsito, agora os responsáveis estão respondendo por homicídio doloso”.

No entanto, Maurício levanta a questão: por que esses responsáveis não ficam presos para proporcionar às famílias das vítimas a sensação de que a Justiça foi feita? Para ele, a legislação é 8 ou 80, ou seja, no Código de Trânsito Brasileiro não existe meio-termo. Ou se tem homicídio culposo ou se tenta trabalhar com o dolo eventual. “O problema do dolo eventual é que ele exige uma interpretação muito subjetiva. Ou seja, naquela situação eu vou avaliar que ele (infrator), embora não quisesse a morte, ele admitiu esse resultado. E isso é complicado, porque é como avaliar o íntimo psíquico do cidadão que estava dirigindo, e isso eu não posso fazer. Então você tenta analisar pelos aspectos objetivos”, explica o promotor.

O desejado, para Maurício, seria a existência de penas mais rigorosas aos crimes relativos a trânsito, que não dependesse dessa interpretação de dolo eventual. O Congresso Nacional já analisa diversos projetos de lei que pretendem aumentar a pena do motorista que pratica homicídio no trânsito, principalmente aquele que dirige sob o efeito de álcool.