Foi impactante ver o corpo do Senandro no ataúde. Duas lágrimas insistiram em cair e atrás delas vieram algumas outras. Pararam rápido. Sabia que o corpo chegaria na sala de velório às 15h, saí de casa para chegar no Cemitério Parque Memorial antes das 15h, mas o trânsito não deixou. Cheguei quase junto com o corpo. Na sala, os três irmãos, a irmã/madrinha, um sobrinho, o presidente da Associação dos Cronistas Esportivos Lucimar Augusto e o colega Danilo Noronha. Pouco tempo depois já estavam entre nós o Romildo Silva, o Sindomar Ribeiro, o José Carlos Lopes e o Charlie Pereira. Pouca gente para o tamanho da importância do ser velado – uma voz que falou e emocionou multidões, num velório em que era possível contar as pessoas. Não havia clima de desespero. A família e os amigos aceitaram bem a morte do Cunha Filho. Além da admiração pelo talento fora do comum, os familiares também se queixaram do distanciamento que a bebida provocou entre ele e os seus. Na verdade, após o término de um longo namoro, ele se consagrou à solidão.

Não havia tristeza no rosto do Cunha. Semblante resignado, sereno. Ali estava o fim de uma vida marcada pelo talento e por escolhas bem pessoais que falaremos mais na frente. Era o fim de uma guerra entre o Peito de Aço e a morte. Ela querendo levá-lo, ele resistindo para ficar. O Acidente Vascular Cerebral ocorreu no dia 26 de setembro, a morte se consolidou no dia 28 de outubro. Não se sabe a hora exata que ele sofreu o derrame. Voltava para casa e o mal foi ao seu encontro. Foi achado caído na rua, já de madrugada e levado para o HUGO. O serviço social do hospital soube de quem se tratava e eu nem imagino como, mas o fato é que ligaram para três colegas da crônica esportiva, Charlie Pereira, Alípio Nogueira e Cid Ramos. Todos influentes e todos muito amigos do Cunha. Coube ao Alípio ir de encontro ao médico atendente para conhecer a real situação. Foi comunicado que ele já havia falecido. Saiu desesperado. Foi consolado pelos outros dois. Ao trio foi solicitada a documentação pessoal do atendido. Antes de ir ao modesto apartamento da Rua 7, no Centro de Goiânia, onde o narrador vivia havia uns 40 anos, Charlie, Cid e Alípio comunicaram o ocorrido aos outros amigos.

O apartamento da Rua 7 era aquele do último andar do prédio, onde o elevador não vai, destinado ao zelador. Nunca soube como, mas o Cunha alugou aquele espaço e ali vivia. Tudo modesto. Moradia de homem solteiro, onde a ordem não é tão preservada. Os colegas acharam a identidade e levaram para o HUGO. Chegando lá, já haviam parentes dele e a informação era de que a notícia da morte foi um equívoco. Ele voltou ter sinais vitais e seria operado. Era hora de refazer a informação – a morte já publicada foi desmentida. No momento em que o equívoco do diagnóstico fatal foi desmentido, os médicos deixaram claro que as chances de sobrevivência eram pequenas e se ocorresse ele ficaria com sequelas na fala, movimentos e visão. Começou a corrente de oração pela sua recuperação. O egoísmo anda lado a lado com o amor em casos assim. Sem levar em consideração o que a pessoa vai passar, ninguém quer que um ser amado morra. Ainda que não ande, fale, ouça e veja com dificuldade, todos os querem vivo, ao seu lado.

As orações alimentaram a esperança por um mês e dois dias. Cunha foi um valente. Mas ao final a morte, única das certezas que temos na vida, venceu. A luta foi muito intensa. Acho que por isto a fisionomia estava serena e resignada dentro do ataúde. Cunha sabia que havia lutado, numa briga desigual e que a morte, se não foi um bem, foi o fim dos males. Acho que isto fez com que os presentes ao velório também tivessem a grandeza da aceitação.

Planejei ficar até as 17h. Entraria no ar as 18h. Uma hora era o tempo de voltar do cemitério para casa. Antes de sair, pedi licença aos colegas e fiquei do lado direito do caixão. Fiz uma oração e depois contemplei pela ultima vez o rosto do velho amigo. O conheci antes da fama. No início da caminhada dele no rádio. Uma profissional do Rádio, a Ozanir Sousa (já falecida), ex-esposa do também radialista Gonçalves Lima, teria de se ausentar da apresentação do programa Eu, Você e a Música, na Rádio Independência de Goiânia. Não achou um colega para substituí-la. O Gonçalves não podia – era o principal locutor/apresentador de uma grande emissora, a Rádio Jornal de Goiás.

Estávamos no início do ano de 1974. Na época, eu fazia parte do grupo teatral da AGT, Associação Goiana de Teatro, dirigido pelo saudoso Otavinho Arantes. Por este único critério a Ozanir achou que eu daria conta do recado. Convite feito, aceito, treinamento de dois dias e fui para o ar. Lá conheci o Cunha.

A Rádio Independência (hoje AM 1090) era muito amadora. Não tinha recepcionista, operava com baixa frequência e não havia interesse do seu proprietário, João Vieira da Paixão em investir na emissora. Tinha as propagandas do governo que lhe bastavam, mantinha a estrutura mínima para não tirar a dita cuja do ar. O Cunha chegou com uma bolsa de courvin pendurada na munheca, roupas simples, calçados simples e quis saber se o diretor da emissora, Alcides Rosa estava por lá. Não conhecia o Alcides, mas perguntei para o operador de som, o Álvaro Dias e ele encaminhou aquele jovem para a sala do homem. Na volta me disse que ele faria um teste para locutor noticiarista. O Sílvio José, uma das mais belas vozes do rádio goiano de todos os tempos, estava de saída. Iria para a Rádio Riviera – era ele o locutor noticiarista da emissora.

No início da outra semana o Cunha estava lá apresentando os boletins de notícias que iam ao ar de hora em hora. Soube depois que passou a apresentar programas musicais também, mas não o ouvi. Meu período na emissora foi de 60 dias. Enquanto isto soube pelo próprio Cunha, que ele era oriundo do Tocantins e que o sonho era ser locutor esportivo. Findados os 60 dias, descobri porque a Ozanir não encontrou quem a substituísse na apresentação do Eu, Você e a Música – até hoje não recebi o tempo trabalhado. Saí de lá vacinado. Vi (no maior dos meus enganos) que trabalhar em rádio era tudo o que eu não queria para minha vida.

Pouco tempo depois ouvi o Cunha Filho narrando jogo na Rádio Jornal de Goiás. O renomado Jota Júnior havia retornado de Belo Horizonte, onde era o principal nome da Rádio Itatiaia e montado uma equipe de esporte no Jornal. Achava que a construção do Estádio Serra Dourada traria um novo momento para o rádio esportivo em Goiás. Veio com a família e o enorme prestígio tentar empreender como chefe de equipe. Depois soube, pelo próprio Cunha, que foi contratado para fazer rádio escuta. Na época, era escutando rádios de outros estados, que os plantonistas colhiam os resultados que informavam durante as transmissões locais. Os plantonistas eram auxiliados pelos rádios escutas, que ouviam até três rádios ao mesmo tempo, para anotar os gols e ocorrências importantes dos grandes jogos brasileiros. Também eram os radioescutas que anotavam as informações dos grandes times nacionais, ouvindo nas ondas de longo alcance, os programas das grandes emissoras, principalmente as rádios Globo e Tupi do Rio, Record e Bandeirantes de São Paulo. Senandro Cunha Filho começou assim. O plantonista era o grande profissional, Hugo Sérgio, irmão do Jota Júnior.

Era impossível imaginar que aquele rapaz humilde, recatado, tímido fosse o mesmo narrador vibrante que explodia o radio de emoção. De mero conhecido, passei a fã do Cunha. Eu e o Estado de Goiás inteiro. Narração bem humorada, vocabulário criativo, capacidade de vibração única e (sem dúvida) o melhor gol do Brasil. O gol do Cunha será pra sempre inesquecível. Ninguém será capaz de gritar um igual. Sua voz única, arroucada e potente ajudava na maneira única de narrar futebol. Foi assim que ele conquistou a alcunha de Peito de Aço, o melhor gol do Brasil e a enorme audiência, mantida de 1974 ao final dos anos de 1990. Nas primeiras narrações quem ouvia achava que se tratava de um profissional tarimbado, veterano no que fazia. Só no velório dele é que soube que ele, realmente, não começou a narrar naquela época. Sua irmã e madrinha me disse que desde criança ele narrava jogos inteiros na hora do banho. Já chegou no rádio pronto, embora o começo se deu por acidente. O Jota Júnior era um dos narradores da equipe, o outro era o Jadir Santos, irmão do Jurandir Santos. Numa rodada em que um dos times da capital (não sei qual, embora o próprio Cunha me contou esta história, mas não guardei o nome do time) ia jogar em Itumbiara e o Jadir não poderia ir, o Jota Júnior tinha de narrar o jogo que aconteceria em Goiânia. Quando soube que era para cancelar o pedido de linha para Itumbiara pois a rádio não transmitiria a partida, o Cunha foi até o Jota Júnior e implorou para narrar o jogo. Narrou um jogo imaginário para o jota ouvir e jurou que dava conta de fazer a narração. Desconfiado o Jota Júnior consentiu, mas avisou que se ele não desse conta estaria desempregado.

Partiu como uma aposta e voltou consagrado. A equipe do Jota Júnior teve apenas dois anos de atuação. O Serra Dourada não trouxe o crescimento esperado para o futebol goiano e nem para a comunicação esportiva. Jota Júnior foi contratado pelo Manoel de Oliveira, para narrar na Rádio Difusora, onde trabalhou até morrer e Cunha Filho foi brilhar nos microfones da Rádio Brasil Central, no emblemático Escrete de Ouro. Fenômeno de audiência foi contratado com o salário mais alto da equipe, pelo Jurandir Santos e Joel Fraga (dois extraordinários narradores) para ser o primeiro narrador dos Donos da Bola, na Rádio Anhanguera. Em 1989, Cunha filho foi contratado pelo Jorge Kajuru para ser o primeiro narrador da não menos emblemática equipe Feras do Kajuru,na Rádio Difusora de Goiânia. Cunha estava numa fase esplêndida. Foi lá que o reencontrei. Kajuru havia me levado para ser repórter e depois me entregou a coordenação da equipe. Passei de fã a colega de trabalho (mas continuei fã). Foi em um jogo narrado por ele, Piracanjuba e Atlético, no Estádio Pouso alto, que fiz minha estreia no rádio esportivo, como repórter de campo. Antes da bola rolar me deu várias dicas e estas me são de muita valia até hoje.

Enquanto brilhava no microfone, Cunha levava uma vida desregrada fora do ambiente do trabalho. Muitas noitadas, muita bebida, muito cigarro. Nenhum cuidado com a voz maravilhosa. Nenhum cuidado com a saúde como um todo. Namorou por alguns anos com uma jovem fantástica, que todos nós, seus colegas, admirávamos. Era cuidadosa e paciente com ele, sempre o tratava com muito carinho. Se chama Vera Lúcia Medeiros e hoje vive no exterior. Certa vez, quando fomos transmitir um jogo entre Atlético e Jataiense, em Jataí, o perguntei, após a transmissão:

– “Porque você não se casa com a Vera?”

– “Porque não abro mão da minha liberdade. Quero ir onde quiser, voltar na hora que for conveniente e fazer o que bem entender. Eu tenho pela Vera o maior amor do mundo e sei do tamanho do amor dela por mim. Mas não abro mão de viver livre”.

Acho que o namoro já durava mais de uma década. A Vera se cansou de esperar e foi morar no exterior e ele continuou com a vida pouco regrada. No velório a primeira coroa de flores que chegou dizia tinha uma fita com a expressão: “Deus se lembrou de você, mas nós jamais o esqueceremos”. Embaixo da expressão vinha o nome – Vera Lúcia Medeiros.

No inicio dos anos de 2000 cunha descobriu um calo na garganta. Foi aconselhado pelos médicos a parar de beber e fumar, para que o tratamento pudesse devolver a normalidade na voz. Não deu conta de abandonar nenhum dos hábitos. A prega vocal resistiu, mas ficou um pigarro que se manifestava quando ele falava. A partir daí começou a narrar os jogos e apresentar os programas, fechando o microfone em curtos espaços para pigarrear. Aquela vibração intensa reduziu. A força da voz também. Foi caindo de emissoras maiores para às menores e o salário foi caindo com estas mudanças. Em pouco tempo já estava sem carro, roupas surradas. Em 2019, quando Jorge Kajuru tentou o retorno das Feras do Kajuru, na Rádio Sagres 730, o senador o contratou. Na entrevista que deu ao Rafael Bessa, falando sobre o retorno, seus olhos brilhavam. Dava pra ver a esperança renascida naquele rosto que misturava um tom de ternura e tristeza, contrastando com sua postura de piadista, bem humorado e homem livre. O projeto durou apenas um ano e novamente Cunha voltou para as pequenas equipes, com pequeno salário. Foi assim até a madrugada do dia 26 de setembro deste ano. O resto da história que sei, já contei nas linhas anteriores.

Nunca soube de um grito que o Cunha tenha dado com quem quer que seja. Nunca soube de uma expressão agressiva dele para quem quer que seja. Nunca soube de um gesto de preconceito ou de humilhação desferido contra quem quer que seja. Acho que o Cunha pensava com o coração e sentia com a alma. Foi maravilhoso para o rádio, foi maravilhoso para os amigos e para os que o conheceram, se não foi maravilhoso pra si mesmo, viveu com a liberdade da qual me disse textualmente que jamais abriria mão e morreu fazendo o que fez a vida inteira – lutando bravamente pela sobrevivência.