A Constituição Brasileira de 1988 determina a educação como “direito de todos” e que um dos responsáveis por ela é o Estado. Nesse sentido, um marco fundamental na legislação do país que visa assegurar a todos e todas de fato o direito à educação é a Lei de Cotas, a nº 12.711. Ela foi um dos temas discutidos durante o 6º Congresso Internacional de Jornalismo de Educação na última semana em São Paulo. Em agosto, a Lei completou dez anos de promulgada, e, tinha previsão de ser revista este ano. Inclusão é a essência dessa legislação.

O professor de sociologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Luiz Augusto Campos argumenta que, antes da Lei, a universidade era mantida pela sociedade, mas não havia inclusão. “Quem se beneficiava dela, eram classes médias e altas, e, garantiam a sua reprodução enquanto classe”, detalha. A fala da professora da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), Dyane Brito Reis também articula essa defesa. “Até 2016, a Lei foi sendo implementada e vai ter uma transformação imensa nas salas de aulas das universidades brasileiras”, argumenta.

Um brasileiro que personifica essa inclusão é Geovane, aluno da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). “Um sonho de estudar acho que veio da minha família, através da minha mãe”. Ele acessou a Universidade pelo Vestibular Indígena de 2020. Geovane nasceu em uma aldeia na fronteira da Colômbia com o Amazonas e afirma que estuda Ciências Sociais por valorizar a educação como busca de conhecimento individual e comunitário. É “uma forma de reconhecer que a gente indígena, precisa ser tratado como igual”, detalha.  Para ele, além da inclusão, a representatividade presente e futura deixa marcas. “Estamos aqui para fazer um legado dentro da Universidade”, relata.

Assim como Geovane, existem muitos brasileiros e brasileiras que acessaram instituições de ensino superior público devido à Lei 12.711 e compreender os dados de inserção dessa população é fundamental. O professor Luiz Augusto Campos coordena o Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas que buscou a produção analítica de dados referentes aos impactos dessa legislação. “Todos os dados vão ao sentido de uma intensa diversificação. A gente sai de mais ou menos 31% de pretos, pardos e indígenas na universidade, em 2001, para 52%, hoje, nas universidades públicas”. Já em termos de classe social, “sai de 19% de indivíduos oriundos das classes C, D, E para 52%” de inclusão em unidades federais do ensino superior. Por isso, o pesquisador defende que “os dados indicam que as políticas de ação afirmativa, no Brasil, são provavelmente uma das políticas mais bem sucedidas em termos de seus resultados”.

O Brasil ainda é um dos recordistas em concentração de renda no mundo de acordo com dados de organizações internacionais.  A Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) defende que a educação inclusiva, equitativa e de qualidade é um dos pontos a serem observados para construção de uma sociedade melhor.

A superintendente de Unidades Estratégicas da UERJ, Luanda Silva de Moraes argumenta que a política de ações afirmativas busca fazer reparações históricas. “Estamos tentando reestruturar aquilo que foi estruturado em uma base eurocêntrica, escravocrata e colonialista”, detalha. A pesquisadora defende a necessidade de pensar quem é esse sujeito de direito e entender que é preciso também olhar para as interseccionalidades, ou seja, para além da raça. “As raízes do racismo estão entrelaçadas as questões de classe”, explica.

Nesse sentido, o professor da UERJ argumenta que o formato aprovado de cotas “consolida um desenho bastante interseccional. Soma um recorte de classe, com recortes raciais e mais, recentemente, outros recortes”, detalha Luiz Augusto. A redação atual da Lei determina reserva de um mínimo de 50% das vagas para estudantes de escolas públicas e, dentro dessa reserva, subcotas para estudantes de baixa renda, pretos, pardos e indígenas, e pessoas com deficiência. A Lei 12.711 se aplica não somente as universidades, mas também aos institutos técnicos e escolas de ensino médio federais.

Desafios

Apesar de dez anos de aprovação da Lei de Costas e a diversificação em espaços de educação superior pública no Brasil, os pesquisadores e pesquisadoras da área apontam desafios a serem vencidos. O foco é para a permanência e a pós-permanência de quem é contemplado pela legislação. Dyane Brito Reis justifica que não adianta apenas a entrada na universidade, seria preciso também observar e agir em termos de viabilizar custeio de materiais a serem usados nos cursos, alimentação e transporte, por exemplo.

Maria Eunice Salvador Procópio detalha a própria realidade nesse sentido. “Para nós universitários, é pesado. Temos que equilibrar as coisas. Tem que ter dinheiro para comida, tem que ter dinheiro para ‘isso’, para fazer nossas coisas. Estou tentando me equilibrar”. Aluna de Ciências Sociais da Unicamp, ela acessou a Universidade pelo Vestibular Indígena, em 2022, processo seletivo somente para os indígenas. Ela nasceu em Benjamin Constant, no interior do Amazonas.

Além da permanência em termos materiais, os pesquisadores e pesquisadoras reforçam a importância de se pensar a representatividade simbólica nesses espaços, ou seja, é preciso que essas pessoas se vejam em seus pares. Murilo Oliveira viveu essa ausência quando acessou o curso de Economia da Universidade Federal de Goiás (UFG), também pelo sistema de cotas para indígenas e quilombolas, UFGInclui, em 2018. Ele relata a falta de inclusão com colegas de curso e destaca a importância de ocupar esse espaço, não só de forma individual. As pessoas que chegam passam a vê-lo como referência, “para mim, isso é muito importante”, detalha.

O professor de sociologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Luiz Augusto Campos aponta outro desafio dentro desse cenário da Lei de Cotas, a pós-permanência. Para ele, é preciso compreender que o problema não está só na conclusão do curso, mas na inserção desses jovens ao mercado de trabalho. Nesse sentido, o professor defende que a ação afirmativa é uma “política meio”, que deve ser acompanhada de outras que garantam a entrada dos ex-estudantes cotistas ao âmbito profissional.

Revisão

A redação original da Lei de Costas previu uma revisão depois dos dez anos da aprovação. A proposta era analisar se a política pública funcionou e assim, discutir se deveria ser ampliada, mantida como está ou não. De acordo com Luiz Augusto, a ideia era que o governo organizasse esse debate. “A rigor, em 2016, a Lei foi modificada para tirar do governo essa responsabilidade. Isso fez com que diferentes setores da sociedade e da academia passassem a organizar eles próprios essa avaliação”, explica. O professor afirma que a legislação prevê revisão e não revogação das cotas. “Se nada for feito esse ano, a Lei de Cotas federal continua valendo”, detalha. O prazo para essa análise está em debate no Congresso Nacional.

Histórico da Lei

A aprovação de um Projeto de Lei dessa magnitude, não foi simples e nem rápido. A professora da UFRB, Dyane Brito Reis detalha que as cotas são reivindicações do Movimento Negro como forma de ampliação do acesso da população preta, parda e de baixa renda ao ensino superior. A pesquisadora recorda ainda que o debate teve início em 2002. Naquele período, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou reservas de vagas em universidades estaduais para estudantes oriundos de escolas públicas e candidatos autodeclarados pretos e pardos. Esse marco deu início a uma década de intenso debate.

O formato aprovado foi discutido e experimentado em vários desenhos ao longo de dez anos, conforme explica Luiz Augusto Campos. Esse debate também chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2012, o STF decidiu de forma favorável a constitucionalidade das cotas. A decisão abriu caminho para aprovação da Lei que uniformizou políticas em âmbito federal e serviu de parâmetro para outras instituições estaduais e municipais.

*Laila Melo é jornalista, mestra em Comunicação e esteve no Jeduca 2022 como enviada especial do Sistema Sagres de Comunicação.