CLÁUDIA COLLUCCI / SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O aumento da produção de lixo hospitalar durante a pandemia de Covid-19, que completa dois anos nesta sexta (11), e o descarte inadequado desses resíduos têm sido alvos de alerta da OMS (Organização Mundial da Saúde) e impulsionado iniciativas de reaproveitamento dos materiais por instituições de saúde de ponta no país.

Entre os projetos estão a transformação de comida em adubo para a produção de alimentos orgânicos, de roupas de cama e banho em bolsas confeccionadas e comercializadas por costureiras de comunidades carentes, de plásticos de embalagens em protetores faciais e até de resíduos infectantes em cápsulas de energia.

Relatório da Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais) de 2021 mostra um aumento de 15% na produção de lixo hospitalar no primeiro ano da pandemia no país em relação a 2019, totalizando 290 mil toneladas. A geração de lixo doméstico cresceu 4% no mesmo período, alcançando 82,5 milhões de toneladas. Em anos anteriores, a alta era de 1% ao ano, em média.

Mas a própria associação acredita que o dado esteja subestimado porque muitos serviços de saúde ainda misturam os materiais ao lixo comum. A estimativa é que 30% dos resíduos das instituições sejam despejados em aterros sem tratamento prévio.

Essa prática contraria as normas vigentes e apresenta riscos diretos aos trabalhadores da limpeza, aos catadores de lixo, à saúde pública e ao meio ambiente. Há regras claras da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) sobre tratamento e acondicionamento do lixo hospitalar, de acordo com cada tipo. Por exemplo, o infectante (como sangue e outras secreções), os químicos (medicamentos), os radioativos (material radiográfico), perfurocortantes (agulhas) e resíduos comuns.

Segundo Carlos Silva Filho, diretor-presidente da Abrelpe, a produção de mais resíduos hospitalares durante a pandemia foi inevitável, pelo aumento das internações e maior uso de materiais descartáveis, para evitar contaminações -e esse volume também foi somado ao lixo gerado pela kits de testagem e pela vacinação contra a Covid.

Silva explica que não há como rastrear esse lixo gerado pelos serviços de saúde. “A gente depende muito da consciência do próprio gerador de não fazer a coisa errada.”

No Brasil, mais de 3.000 municípios mantêm lixões a céu aberto. Em um deles, na cidade de Eunápolis (BA), por exemplo, catadores dizem que a quantidade de resíduos hospitalares aumentou muito na pandemia. É frequente encontrar ali frascos de soro, luvas, máscaras, faixas e algodão ainda sujos de sangue, seringas, agulhas e cateteres, alguns ainda presos em bolsas de transfusão.

“Eles se esquecem que aqui tem seres humanos que dependem do lixo até para comer”, diz José, 62, que trabalha há 15 anos no lixão em busca de recicláveis. Dali ele tira R$ 600 mensais. Outras 20 famílias fazem o mesmo.

De acordo com um relatório recente da OMS, mesmo antes do início da pandemia, a gestão de dejetos hospitalares de forma segura era insuficiente. A Covid-19 só piorou a situação.

Segundo os últimos dados disponíveis, de 2019, 30% dos estabelecimentos de saúde no mundo não contam com sistema seguro. Nos países menos desenvolvidos, a proporção é de quase 60%. Para a OMS, é vital que os países dediquem mais atenção ao manejo sustentável.

No Brasil, há várias iniciativas em curso. O Hospital Moinhos de Vento, de Porto Alegre (RS), conta com uma central de transformação de resíduos dentro do hospital e, em 2021, criou um projeto de reciclagem de 100% dos resíduos passíveis de reaproveitamento, em parceria com empresas.

Uma tonelada de plástico de alta densidade, por exemplo, foi transformada em 40 mil protetores faciais para profissionais da linha de frente, sendo que 90% foram doados a hospitais públicos.

Atualmente, o hospital encaminha cerca de uma tonelada de material reciclável por dia para reaproveitamento. Mais de 3.000 panos de TNT (tecido não tecido) vão para associações de costureiras, que fabricam sacolas ecológicas. Já o polietileno se transforma em sacos de lixo de 60 litros.

Todos os restos de alimentos viram adubo orgânico, utilizado na horta da instituição. Uma parte vai para uma cooperativa, que troca o adubo por arroz orgânico que é preparado no hospital.

Ano passado também foram reciclados 140 mil quilos de papel. O material foi para uma empresa, que, por meio de permuta, abasteceu o hospital com o equivalente a R$ 70 mil em papel higiênico.

Segundo Mohamed Parrini, CEO do Moinhos de Vento, a pandemia também gerou grande aumento dos resíduos infectantes: o volume passou de 363 mil quilos em 2019 para 536 mil em 2021.

“Esses resíduos, depois de tratados, seriam descartados [em aterros específicos], mas a gente começou a tratar para minimizar os impactos no meio ambiente. A gente incinera e converte em cápsulas de energia”, explica Parrini.

A próxima fase, que depende de parcerias e aprovações ambientais, será transformar essas células de energia já limpa, hoje armazenadas na usina do hospital, em gás para a própria instituição, para o abastecimento das caldeiras, por exemplo.

Parrini diz que a ideia de reciclar os próprios resíduos veio quando a instituição passou a ter dúvidas sobre a qualidade e a confiabilidade do tratamento que empresas terceiras dariam aos resíduos.

“A gente começou a buscar soluções que dessem a plena segurança de que não íamos encontrar nenhuma etiquetinha nossa num aterro. A gente esteriliza aqui, a gente incinera aqui e converte em cápsulas de energia aqui.”

Em São Paulo, um dos projetos do Hospital Albert Einstein conseguiu zerar o descarte de resíduos têxteis hospitalares, como uniformes, roupas de cama e banho, em aterros sanitários. São sete toneladas diárias.

Segundo Ana Paula de Araújo Santos, gerente de Hotelaria e Facilities do Einstein, depois de descontaminado, o material é retirado por ONGs e empresas que apoiam 80 costureiras das periferias do Brasil, e transformado em bolsas e sacolas retornáveis, estojos e nécessaires. São cerca de 3.000 peças por mês.

Em alguns casos, ao final do processo, o Einstein compra os produtos para distribuição de brindes e doações. “O projeto promove a economia circular, porque esse produto gera renda e trabalho.”

O Hospital Alemão Oswaldo Cruz também conta com um sistema que envolve redução de resíduos infectantes. Assim, para a instituição, em 2021, mesmo na pandemia, houve queda de 8% na geração desse lixo. Um total de 325 toneladas de resíduos passou por reciclagem, um aumento de 13% em relação a 2020.

No Hospital Sírio-Libanês, 37% do total do lixo gerado (3.445 toneladas) são reaproveitados. Além de vários projetos envolvendo a reciclagem de materiais com empresas parceiras, a instituição também tem atuado no processo de compra para não gerar resíduos desnecessários.

Por exemplo, negocia para que determinados produtos não venham mais em inúmeras caixinhas de papelão, mas sim em grandes sacos plásticos que, uma vez higienizados, são reaproveitados nas remessas seguintes.

“Nada disso vai impactar negativamente na assistência, mas sim otimizar essas entregas e processo, e utilizar o mínimo possível. Não podemos fazer saúde a qualquer preço. Tem que ter sustentabilidade”, diz Gizelma Simões Rodrigues, gerente de sustentabilidade ambiental do Sírio.

Assim como em outros hospitais, no início da pandemia de Covid, o desconhecimento sobre o Sars-CoV-2 fez com que o volume de resíduos infectantes produzidos no Sírio passasse a representar 40% do total de lixo, quase o dobro do período pré-pandêmico (22%). Hoje, a quantidade já voltou aos patamares de antes da pandemia.

Atualmente, todo resíduo infectante produzido pelos hospitais é tratado em autoclaves, o que garante a eliminação do risco biológico, e encaminhado depois para o aterro sanitário, segundo os gestores.

Para o arquiteto Vital de Oliveira Ribeiro Filho, presidente voluntário do conselho dos Hospitais Saudáveis, projeto que reúne 160 instituições engajadas no tema sustentabilidade, essa abordagem ainda é a melhor alternativa.

Na sua opinião, projetos de incineração de resíduos para a transformação em energia, além de ser um investimento muito alto, não são sustentáveis porque envolvem a queima de plástico.

“Esse plástico vai levar muitos poluentes para o ar. Se você queimar só polietileno, o resultado é razoável, mas grande parte do plástico usado nos serviços de saúde é PVC”, afirma Ribeiro Filho, que trabalha no Centro de Vigilância Sanitária do governo paulista.

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