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Dirigir pelas ruas de Goiânia exige uma boa dose de paciência. Muitos culpam a quantidade de carros, outros, a engenharia de tráfego e há quem responsabilize a ação ou omissão do poder público. Mas o maior vilão do caos que se instalou no trânsito goiano é o próprio motorista goianiense, que não respeita as leis e, protegido pela carapaça do carro, abdica de toda a civilidade para se tornar um competidor de rua.
A reportagem da Rede Clube de Comunicação flagrou diversas irregularidades cometidas diariamente pelos motoristas. Na Marginal Botafogo é evidente essa falta de civilidade do motorista que circula pelo acostamento como terceira faixa, atrapalhando o acesso à via. Muitos desconhecem que não existe terceira via na Marginal Botafogo e a fila que se forma no acostamento é igual a das faixas regulares, principalmente em horários de maior movimento. Nem mesmo os motoristas por profissão se salvam da desobediência às leis de trânsito. Entre as avenidas Paranaíba e Goiás taxistas simplesmente ignoram as placas de proibido estacionar. A mesma desobediência ocorre em frente à Universidade Salgado de Oliveira, na Avenida Cora Coralina. Os carros se posicionam bem debaixo das placas que sinalizam a proibição.
Na tentativa de melhorar o trânsito, a Prefeitura de Goiânia vem implantando corredores exclusivos para ônibus. Todavia, as vias exclusivas que já existem não são respeitadas pelos motoristas. Na Avenida 84, Centro da cidade, o que se vê é uma fila de carros no corredor dos ônibus. Nem os espaços destinados aos pedestres são respeitados. Na Rua 90, em frente à sede do Ipasgo, os carros tomam conta das calçadas, obrigando os pedestres a andar na rua.
Incapaz de interagir racionalmente com o meio, esse motorista reclama da única forma de controle que o poder público detém: a punição. Unidos em coro, eles alimentam uma campanha contra a chamada indústria da multa, que nada mais é que a punição exclusiva a quem desobedece às leis.
Nas instituições de trânsito, não há dados que apontem o motorista como o vilão do trânsito, porém os números comprovam as constantes infrações cometidas em Goiânia. Em 2012, a AMT registrou cerca de um milhão e meio de multas, sendo que 40% por excesso de velocidade e avanço de sinal. Uma estatística que supera o número de carros na capital que é de 1 milhão 92 mil 108 veículos. Sendo que a frota de Goiânia se aproxima de grandes centros urbanos com trânsito que flui mais rápido, exemplo de Curitiba.
Os flagrantes reforçam a imagem de um condutor egoísta e mal educado. E há poucas exceções nas ruas de Goiânia. A pecha atinge aquele pai ou mãe que ignora a placa de proibido estacionar para deixar o filho praticamente dentro da escola; aquele que tornou a seta um acessório dispensável e aquele que ignora a seta do veículo vizinho que pretende mudar de faixa. Coitado de quem precisa sair da garagem. O motorista da capital não costuma dar espaço para ninguém entrar na sua frente.
Quem vem de fora estranha o fato dos motoristas goianienses não obedecerem às leis federais. Joaquim Sousa, engenheiro carioca de passagem por Goiás, comenta que, no Rio de Janeiro, não há “cochilos” quando o sinal verde dá passagem. “Com a passagem permitida, é o prazo do carro da frente se mover para o de trás fazer o mesmo, se cochilar é batida na certa”. Outro hábito questionável do motorista goianiense é o de fazer mudanças bruscas de faixas, sem aviso prévio da seta. Alguns não se intimidam ao interromper o fluxo para perguntar um endereço ou apanhar um passageiro. Também é comum encontrar aquele que – frente ao calor frequente da capital – prefere aguardar a abertura do sinal sob a sombra de uma árvore que fica a 20 metros de distância do carro da frente.
Essas situações tão corriqueiras em Goiânia aumentam a tensão no trânsito e podem culminar em violência, segundo a secretária Municipal de Trânsito e Mobilidade, Patrícia Veras. “Tem motorista que apresenta comportamento inadequado no trânsito e causa transtorno na cidade como um todo.” Especialista em trânsito e mobilidade, Patrícia Veras assumiu a SMT no inicio do ano e tem o árduo desafio de humanizar o caos que se instalou na cidade. Na área pública desde 1989, Veras foi coordenadora de trânsito em dezenas de prefeituras no interior de São Paulo e se assustou com o comportamento do motorista do cerrado. Ela aponta algumas prioridades. “As vias de Goiânia precisam dar um tratamento preferencial ao pedestre. Vamos implantar os porta-focos de pedestres, os sinais de pedestres nos principais cruzamentos e intensificar a fiscalização em relação ao uso indevido das calçadas.” O porta-foco é aquele sinal com o desenho de uma mão indicando parada obrigatória e de uma pessoa indicando passagem livre.
A secretária de trânsito reforça que as ruas e avenidas de Goiânia são bem sinalizadas e amplas, um privilégio se comparadas as outras capitais do país. “ Apesar de Goiânia ser uma cidade que tem um sistema viário privilegiado em comparação com outras cidades nós vemos que apresenta pontos de lentidão no tráfego e também uma dificuldade para que o pedestre possa circular com segurança.”
Para cumprir as promessas de campanha do prefeito Paulo Garcia, Patrícia Veras deve implantar medidas impopulares como acabar com os estacionamentos nas avenidas T-63, T-9 e T-7 para abrir corredores exclusivos para o transporte coletivo. A medida deve dificultar a vida do motorista de carro e moto, mas beneficiar a maioria que se desloca nos ônibus.
O conceito de Patrícia Veraz recebe elogios de doutores em mobilidade urbana. Érika Cristine Kineb, professora na UFG, defende o uso racional do veículo. Para isso ela esclarece que o município deve investir em transporte público, oferecendo um serviço de qualidade. “É muito complicado querer que o transporte público tenha eficiência se ele não tem espaço para circular e acaba ficando preso no congestionamento junto com o carro”. Segundo Érika Kineb, as políticas de mobilidade em Goiás estão ultrapassadas. Ela cita exemplos de cidades na América Latina que abriram mão da individualidade por um trânsito que funciona, “Santiago adotou um sistema de transporte coletivo interessante e um exemplo que é referência mundial é Bogotá na Colômbia. São cidades que também têm uma série de dificuldades, mas mesmo assim conseguiram priorizar o transporte público e hoje estão recuperando sua qualidade de vida.”
Antenor Pinheiro, superintendente de Desenvolvimento Urbano da Secretaria de Cidades do Estado, percorreu o mundo atrás de exemplos de boa convivência no trânsito. Ele aponta o modelo de Drachten como fantástico. As ruas e avenidas da cidade localizada no norte da Holanda não possuem semáforos, placas de sinalização, quebra-molas, meios-fios, lombadas eletrônicas. Antenor Pinheiro diz que “num primeiro momento, qualquer visitante brasileiro se sente perdido diante um sistema viário tão incomum, mas gradativamente ele começa a se apropriar da novidade, principalmente na condição de pedestre que é o protagonista em qualquer situação de trafegabilidade por lá”.
Antenor Pinheiro destaca que o Brasil precisa avançar muito para atingir o conceito de Drachten, já que por aqui a preocupação é formar condutores de carros e motos. “Nós não formamos o cidadão para ele interagir com o sistema de mobilidade. Nós formamos o cidadão para guiar um carro ou então pilotar uma moto e esse é o grande equívoco conceitual pelo qual passa o processo de formação do motorista no Brasil.” Segundo o especialista, a origem da falta de educação do motorista goianiense envolve questões culturais e falhas na política de formação do condutor. ”O Código Brasileiro de Trânsito não é cumprido e nem fiscalizado, a punição é ineficiente e o motorista mal preparado.”
Em 2012, 455 mil pessoas passaram pela prova prática no Detran Goiás, quase a metade foi reprovada, 48,9%. Dados que, segundo o gerente de Exames de Trânsito do órgão, José Orlandes, comprovam que o candidato chega a reta final do processo de formação sem conhecimento suficiente para se tornar motorista. Ao contrário de Antenor Pinheiro, José Orlandes defende a legislação e transfere para o cidadão a “responsabilidade de buscar os conhecimentos básicos para dirigir com segurança”. Todavia, o gerente de Exames do Detran reconhece que “o governo federal, através do Denatran, deveria ter uma fiscalização mais efetiva, dentro das instituições que cuidam do trânsito no Brasil, acompanhando mais de perto como está sendo feita a preparação desses candidatos.”
A realidade é que gestos simples da boa educação não são suficientes para dá fluidez no trânsito, mas com certeza o deixaria menos estressante. Durante a reportagem, uma bem vestida condutora de um carro de luxo parou o veículo em um local proibido e esbravejou contra a repórter ao perceber que estava sendo filmada. A atitude revela que além de formação, falta berço a alguns motoristas na capital.