Pouca coisa era mais triste, em Campinas, do que uma tarde depois da chuva que caiu o dia todo, ir embora. Aquela escuridão, acompanhada pelo frio, misturados ao vazio das ruas, deixava o espaço tristonho, muito tristonho. Seu Chico Preto, benzedor de cobreiro, mal olhado, vento virado e quebrante, orientava que era o céu anunciando trevas para os descuidados.

O negro morava no Dergo, mas suas benzecões milagrosas deram a ele respeito por Campinas inteira. Já tinha a cabeça e a barba brancas. Era alto, mas andava esguio, nada de curvatura pra frente, gostava de calça marrom e camisa branca. Calçava sandálias de tiras de couro, que ela mesmo fazia, na pequena oficina, onde punha meia sola nos sapatos. Seu Chico também remendava bola de capotão: descosturava o couro, puxava a câmara de ar pra fora, lixava o local do buraco. com ralinho de lixar o pé, fazendo o mesmo com o pedaço da câmara de ar, retirada de algum pneu de pneus de bicicleta, passava a cola, esperava secar por 15 minutos e depois era só juntar as partes e estava remendada a câmara de ar da bola.

O remendo era arredondado e não podia ser grande, para não deixar papo na bola. Remendar era fácil, recosturar o capotão é que exigia habilidade e conhecimento. Dois pedaços de cordonê eram enfiados em duas agulhas apropriadas para o serviço. As agulhas tinham pontas curvadas para dentro. Seu Chico passava de dentro pra fora, nos primeiros buracos da costura desmanchada, uma agulha de um lado e a outra do outro, das partes a ser juntadas pela costura. Dava uns nós cegos em cada uma das pontas do cordonê, até formar um caroço de linha que não passava pelo buraco do capotão. A agulha da direita era enfiada no buraco da esquerda e da esquerda era enfiado no buraco da direita. Sem apertar o ponto, Chico Preto passava pelo lado de dentro do gomo, as agulhas para os buracos da frente. Por isto as pontas das agulhas eram arqueadas. Saiam de um buraco para o outro com uma certa facilidade, graças ao formato. Depois a agulha da direita vinha para o buraco da esquerda e o da esquerda para o da direita e assim seguia a costura até chegar aos últimos dois buracos dos gomos que foram descosturados para a retirada da câmara de ar para o lado externo. Aí era só puxar a ponta da linha apertando os pontos e amarrar as duas pontas do cordonê e a bola estava nova de novo.

Era uma técnica que poucos dominavam. Seu Chico Benzedor tinha aprendido na cadeia. Quando jovem, na cidade de Pouso Alto, havia matado o padrasto. Saiu de manhã para o trecho da roçagem do pasto numa empreitada que tinha pego na fazenda do Sinhozinho Fleury e, quando voltou, o padrasto estava batendo na mãe outra vez – bêbado após a chegada da venda. Desceu a curva da foice amolada no pescoço do homem. Foi sangue pra todo lado e a morte ali mesmo, após a segunda foiçada no mesmo lugar. A cabeça ficou fixada no corpo por uma pequena parte do pescoço que resistiu aos dois golpes.

A negra Setembrina ficou viúva aos 17. Ele tinha pouco mais de um ano. O pai, amansador de burro brabo, havia morrido na queda durante a doma. Depois de cair, o burro deu um coice certeiro na cabeça. Foi socorrido na hora com toalha com água de sal quente no local, mas morreu minutos depois. Setembrina viveu a viuvez por 15 anos, ganhando dinheiro dos tropeiros que traziam mercadorias do Porto de Santa Rita, hoje Itumbiara, para a nova capital do Estado, Goiânia. A dona da casa era Ana Juvêncio, que tão logo passou o luto, mostrou para Setembrina que ela ganharia mais dinheiro no bordel do que trabalhando. Setembrina aceitou a proposta. Até que ganhava um bom dinheiro, mas Ana Juvêncio ficava com a metade por ser a dona do estabelecimento e cobrava a taxa pelo uso do quarto. As mulheres que se deitavam com os tropeiros, ficavam com uma ninharia de dinheiro.

Chico foi pra escola. Até os 12 anos aprendeu ler, escrever e fazer contas. Neste período cuidava da limpeza do barracão e lavava as roupas dele e da mãe. Aos 12 anos se formou no primário e começou a trabalhar nas empreitadas das fazendas do município. Foi o Clarismundo que o iniciou no ofício. Pegava as empreitadas e pagava o menino por dia trabalhado. Ali pelos 15 anos passou a pegar as próprias empreitadas. Roçava pasto, capinava terra no preparo para o plantio do feijão, fazia aceiro nas cercas de divisas, pegava roça para limpar.

Era alto, magrelo, caladão e caprichoso no serviço. Levantava de madrugada, cozinhava a comida do dia, arrumava a matula, passava a alça do bornal pelo ombro, enfiava o cipó do bico da cabaça na ponta do cabo da ferramenta, jogava nas costas e antes do sol nascer, já estava no caminho da empreita. Na travessia do Rio Piracanjuba enchia a cabaça de água.

Sabia o que a mãe fazia. Acho que por isto falava tão pouco. Quando Setembrina conheceu o Zé Capitão, lá no bordel da Ana Juvêncio, Chico tinha quase 16 anos. O homem quis morar com ela. Com vontade de deixar aquela vida, a negra topou. Chico até gostou da idéia. Zé Capitão era gambireiro de tropa. Tinha vindo de Buriti Alegre, trazendo cavalos, éguas, burros e mulas. Alugou o pasto dos filhos da viúva do Florípedes. Durante o dia negociava com os comerciantes que chegavam em Pouso Alto com os animais estropiados, sem condição de seguir viagem. Zé Capitão pegava estes animais na troca pelos saudáveis que ele tinha no pasto e recebia a diferença em dinheiro. De noite ia pra casa da Ana Juvêncio beber e usar as mulheres. Gostou dos serviços da Setembrina e por isto decidiu tirar a negra do bordel.

Sabia fazer seu trabalho. Tratava os cascos dos cavalos estropiados com azeite de mamona, fumo e erva de Santa Maria. Fazia a sangria e depois deitava milho e bagaço de cana no animal, que logo estava saudável para ser trocado por outro que chegasse estropiado. Tinha negócio todo dia. A tropa só crescia.

No começo da vida ao lado da Setembrina ia pra venda beber em todas as noites, mas chegava em casa e ia dormir. Poucos meses depois chegava, procurando um pé de briga e logo começou espancar a mulher, sempre que chegava bêbado. Setembrina apanhava calada, para o filho não notar. Os hematomas nos locais dos agarrões nos braços, mostraram para Chico, que a mãe estava sendo espancada. Numa sexta-feira de lua cheia, aproveitou a claridade e permaneceu no roçado até terminar a empreitada, do Sinhozinho Fleury, lá pelas 10 da noite. Segunda-feira já tinha outra para começar.

Cansado pelo jornada estendida, Chico rumou para a cidade, com a estrada clareada pelo brilho da lua. Ao abrir a cancela da cerca de ripa do barraco, notou o movimento estranho lá dentro. Apressou o passo sem fazer barulho. No barraco não tinha eletricidade. A noite era iluminada pela lamparina. Ao entrar na moradia, viu Zé Capitão espancando a mãe. Nem viu quando desceu a foice no pescoço do homem, que ao cair esguichando sangue pelas paredes de abobe sem reboco do quarto, ainda esticou os olhos pro seu lado e a foice desceu pela segunda vez.

Zé Capitão foi enterrado, os filhos da viúva do Florípedes ficaram com toda tropa, alegando dívidas no aluguel do pasto, compra de milho e cana. Todos sabiam que era mentira, mas Setembrina não teve ninguém para defendê-la e saiu da amigação, com um filho assassino e pobre como entrou. Chico foi preso e veio para a nova penitenciária de Goiânia, no Bairro Popular. Ficou lá por 10 anos, entre 1948 e 1958. Só recebia a visita da mae, cada vez mais velha e decadente. Após a prisão do filho voltou para o bordel. Ficou por lá mais alguns anos. A passagem do tempo deixou o corpo impróprio para o trabalho. Em 1960 arrumou emprego na limpeza do matadouro municipal e com este emprego sobreviveu, comprando os muitos remédios que tomava e comprando os alimentos.

Em 1958, quando saiu da cadeia, Chico voltou para a cidade natal, agora já com o nome de Piracanjuba. A mãe doente e velha, ainda trabalhava no matadouro. Lá abriu a primeira oficina de conserto de calçados e bolas. Mas o serviço que aparecia era pouco. Nesta época a mãe frequentava um terreiro e com os umbandistas aprendeu as benzeções. Chico passou a frequentar o terreiro e também aprendeu a benzer. Em novembro de 1969, Setembrina morreu. Chico vendeu o barracão e veio morar no Dergo, onde abriu a oficina que consertava calçado e costurava bola. Foi um salto e tanto. Em pouco tempo ficou famoso como benzedor e profissional nos ofícios que desempenhava. Tinha serviço e benzecão todos os dias.

Naquela tarde de sábado após chuva duradoura, Chico Benzedor viu a tristeza no ar. Tarde calada e escura. O Getúlio o chamou lá do portão. Veio buscar a bola para o jogo do Capuavinha contra o São Francisco. Chico mandou entrar. O Getúlio colocou a bicicleta pra dentro do lote e entrou. Chico estava enchendo a bola, quando o Getúlio pediu pressa: “Não vim antes porque a chuva não deixou, mas hoje é dia de levar a Margô lá pra serraria do meu pai, agora às 17h, quando ela sair do serviço. Margô era doméstica na casa da dona Maria Cumha e aos sábados, ao sair do emprego se encontrava com o Getúlio na Serraria Ypiranga, do seu Elizeu, pai do moço. Ao ouvir o pedido, Chico sentiu calafrio e um arrepio agressivo percorreu seu corpo: – “Dia de escuridão como este merece cuidado. O céu está pedindo oração para a claridade voltar. Não encontre com a Margô hoje” – orientou o benzedor. Getúlio, pouco crente no negro respondeu jocosamente: – Pura bobagem. Enche logo esta bola”.

Chico entregou a bola, o Getúlio pagou, prendeu a redonda com a aste da garupeira e saiu pedalando apressado. Chico sentiu o arrepio assustador outra vez. Pegou um galho de arruda no quintal e rezou, benzendo Getúlio e Margô. Instante em que o céu clareou com um relâmpago e a chuva recomeçou. Os relâmpagos continuaram e um raio caiu sobre a Serraria Ypiranga, destruindo parte do galpão e do equipamento. Os dois cachorros cabeçudos que vigiavam o local fora dos horários de atividades e o cavalo que puxava a carroça, nas entregas, morreram. Getúlio e Margô ainda se encontraram em muitos sábados depois daquele dia, mas nunca em tardes escuras após chuva longa.