Os bebês reborn — bonecas hiperrealistas que imitam recém-nascidos com impressionante realismo — deixaram de ser apenas itens de colecionismo para ocupar espaços cada vez mais diversos na sociedade brasileira. Das redes sociais aos consultórios terapêuticos, passando por feiras de artesanato e até batalhas judiciais, esses bonecos têm gerado debates acalorados sobre seus usos, significados e limites.
O tema foi abordado recentemente no programa Pauta 1, do Sistema Sagres, que trouxe à tona não apenas o crescimento do interesse popular por esses “bebês”, mas também os contextos emocionais e jurídicos que os cercam. Um dos casos mais comentados é o de um casal goiano que está em disputa judicial pela guarda de um bebê reborn — e até pela administração da rede social vinculada à boneca, que tem gerado lucro.
Para a psicóloga Cleide Neves, convidada do programa, o fenômeno precisa ser analisado com cautela e empatia. “Primeiramente, nós, psicólogos, estamos em um papel de não julgamento. Nós tratamos as subjetividades. Ter um bebê reborn não quer dizer que a pessoa está doente”, afirmou.
Os reborns surgiram como peças artísticas e colecionáveis nos Estados Unidos, ainda nas décadas de 1980 e 1990, chegando ao Brasil por volta dos anos 2000. Mas foi no uso terapêutico que encontraram uma função mais sensível, especialmente entre idosos com Alzheimer e mães em processo de luto.
“A boneca pode simbolizar algo durante o tratamento, mas não substituir uma perda. Ela pode auxiliar na travessia das cinco fases do luto até a aceitação”, explicou Cleide. Contudo, a linha entre o uso simbólico e a fuga da realidade pode ser tênue.
A psicóloga alerta que em alguns casos, o apego excessivo pode indicar transtornos como depressão ou transtorno dissociativo. “Não faz sentido, do ponto de vista psicológico, alguém levar um bebê reborn a um consultório médico como se fosse uma criança real, exigindo atendimento. Isso pode revelar um sofrimento psíquico mais profundo”, disse.
Nas redes sociais, o fenômeno ganhou força com a viralização de vídeos de adultos interagindo com os bonecos como se fossem filhos de verdade — incluindo amamentação e consultas médicas fictícias. Para Cleide, esse tipo de exposição pode afetar negativamente quem recorre aos reborns de maneira terapêutica.
“Às vezes isso diz mais sobre quem julga do que sobre quem tem o boneco. A sociedade tem um olhar muito duro, e isso pode prejudicar quem está num processo legítimo de tratamento”, afirmou. Outro ponto destacado durante o programa foi o lado comercial desse mercado.
Com vendas aquecidas, empresas têm lucrado com a personalização dos bonecos e até oferecido experiências imersivas, como partos simulados. “Há um apelo de marketing forte, sim. E precisamos reconhecer que isso também está presente nesse fenômeno”, comentou Cleide.
O caso do casal de Goiás ilustra bem essa complexidade. Segundo a psicóloga, não é possível afirmar se há patologia envolvida sem uma escuta clínica adequada. “Pode ser um caso de luto, de desejo não realizado de maternidade ou apenas um empreendimento digital que ganhou projeção. É preciso escutar antes de rotular”, defendeu.
Apesar das controvérsias, Cleide reforça que o mais importante é o olhar atento à saúde mental e ao limite entre o afeto simbólico e o prejuízo funcional. “O exagero precisa ser observado, principalmente quando interfere na vida cotidiana e nos relacionamentos reais. Cuidar da mente é tão importante quanto cuidar do corpo”, concluiu.
O caso de Goiânia, revelado pela advogada Suzana Ferreira nas redes sociais, viralizou. “Hoje eu fiz o atendimento de uma mãe de um bebê reborn, e vou compartilhar com vocês esse atendimento por acreditar que a loucura da sociedade impacta diretamente na nossa profissão”, afirmou Suzana, que é especialista em direito digital.
A advogada relatou ter sido procurada por uma mulher que, após o fim de um relacionamento, viu o ex-companheiro reivindicar o direito de conviver com a boneca, alegando apego emocional. Segundo ela, o conflito extrapolou o objeto em si.
“A bebê reborn tem um Instagram que já rende monetização, publicidade. A outra parte quer ser administradora também da conta, que hoje é um ativo digital. Quem tem a guarda para poder administrar esse Instagram? Essa é a questão”, pontuou.
“A partir do momento que esse sujeito começa a substituir a troca afetiva com seres humanos por objetos, é um sinal de que algo precisa ser cuidado. Pode haver vivências do passado, dores não elaboradas, projeções inconscientes”, explicou Cleide. Ela também destacou o peso dos julgamentos sociais sobre práticas não convencionais.
“Há apresentadores dizendo que essas pessoas ‘têm que brincar com bonecos, porque imagina com um bebê real’. Isso é extremamente ofensivo. Não sabemos o que está por trás da história de cada um. Pode ser um sonho de infância, uma tentativa de preencher um vazio. Precisamos praticar mais empatia”, ressaltou.
O fenômeno dos bebês reborn, apesar de parecer trivial para alguns, está inserido em um contexto social mais amplo, de acordo com especialistas. Solidão, hiperconectividade e a busca por vínculos afetivos em tempos de relações líquidas são fatores que ajudam a entender o aumento desses casos.
“Vivemos em uma sociedade onde o cuidado com a saúde mental ainda é elitizado. Muitas pessoas sequer têm acesso a um diagnóstico adequado. Enquanto isso, o comportamento atípico é julgado ao invés de ser acolhido”, afirmou Cleide. “Precisamos de psicólogos nas escolas, nas empresas. Não adianta levar um profissional para cuidar de 500 alunos. Saúde mental precisa de investimento real.”
A discussão também revelou uma preocupação com o impacto das redes sociais na formação e exposição desses vínculos. “As pessoas estão dando mais moral para a rede social do que para os vínculos reais. E, quando esses laços digitais se rompem, os conflitos vão parar no Judiciário”, alertou a psicóloga.
Por enquanto, a Justiça ainda não se pronunciou oficialmente sobre o caso. Mas o episódio já é tratado como um novo desafio para o direito e para os profissionais da saúde mental. A advogada Suzana Ferreira alertou: “São demandas reais. O Judiciário vai precisar se preparar para isso”.
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 03 – Saúde e Bem-Estar
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