O diretor Lars Von Trier, em montagem com cena de “Vampyr”, de 1932. (divulgação/internet)

Quinta-feira passada, a Cileide, o Rubens e eu comentamos sobre “Desejo de Matar”, o novo filme do diretor Eli Roth – que é apaixonado pelo terror trash, num nível quase pornográfico. O cara ama violência explícita. Sua obra mais relevante é “O albergue”. Já assistiu?

Mas Eli Roth é para amadores. O nível de incômodo visual se eleva ao extremo quando a gente coloca o Lars Von Trier na roda.

Von Trier é um multi premiado diretor dinamarquês mais famoso por “Dogville” (2003) – aquele filme com a Nicole Kidman que foi gravado num estúdio praticamente vazio (A cenografia ficava a cargo de marcações no chão, que simulavam paredes, muros e cercas. E os sons davam o toque de profundidade que precisávamos para mergulhar naquele mundo. É interessantíssimo). Foi despudoradamente chamado de gênio.

O que pouca gente notou – e olhando já para o seu filme anterior, “Dançando no escuro” (2000), vencedor da Palma de Ouro em Cannes, temos uma dica bem precisa disso – é que o diretor dava sequência a seu tema favorito: o sofrimento humano.

A partir de “Dogville”, Lars produziu uma série de filmes incômodos – por vezes chocantes – ancorados na dor humana em diversos patamares. “Manderlay” (2005), “Anticristo” (2009), “Melancolia” (2010) e, por fim, “Ninfomaníaca” vol. 1 e vol 2 (2013) funcionam quase que como numa escala. A parte tensa é que as próprias atrizes, para além de seus personagens, também reclamaram de sofrimento e maus tratos durante as filmagens. Há quem defenda isso como o método criado pelo próprio diretor. Entrou de brinde no clima dos filmes.

O fato é que esse ano, Lars Von Trier voltou a ser aceito em Cannes, depois de um banimento de sete anos. O diretor havia dado declarações polêmicas a repórteres na edição de 2011, dentre elas a afirmação de que “entende Hitler”. Foi para a geladeira. Nesse retorno, declarou que depois de fazer filmes sobre mulheres boas, agora decidiu trabalhar com um homem mau. E chocou geral na tela. Faz assim, vai no Google e digita o nome do Lars, e clica na sessão de notícias. Eu espero. “Lars Von Trier revolta espectadores”; “Parte do público abandonou a sessão antes da hora”; “Von Trier apresenta seu filme mais cruel e misógino”. É uma coleção de elogios sobre a exibição de sua obra mais recente, essa semana, no Festival Cannes.

Não se sabe o quanto disso tudo é marketing, e o quanto realmente procede. Ainda durante a pós-produção de “The House that Jack Built” (2018) ou, numa tradução livre não oficial “A casa que Jack construiu”, foi divulgada uma foto-montagem de Lars assumindo o papel de morte numa cena clássica do filme “Vampyr” (1932), de Dane Carl Theodor Dreyer. O próprio diretor. O que pode ser considerado como uma dica de que parte de seu novo filme também seja confessional.

A trama gira em torno de um serial killer (Matt Dillon) apelidado de Mr. Sophistication (sr. Sofisticação), pelos métodos que utilizava para matar. Inclua aí tortura, mutilação animal e requintes de crueldade em geral. A diferença dessa nova obra com os filmes do Eli Roth, que eu mencionei lá no início, é que não existe nada de “gore” ou de “trash”. Não há a apelidada “violência pornográfica”, porque o que Von Trier gosta de explorar não é esse sangue pirotécnico. É aquele que bate lá no fundo, no sofrimento e na agonia. Impacto visual, nesse caso, não se mistura com explicitude. E isso revela muito do diretor, em si mesmo. O diretor que promoveu seu filme vestido de morte mais uma vez compartilha seu lado sombrio. Afinal, tudo o que tem nos incomodado nos filmes de Lars – inclusive esse último, ainda inédito no Brasil – saiu da cabeça dele. Como num desejo de desabafar, de sublimar ou extravazar. Isso, por si só, já é bastante perturbador.

Curiosamente, o nome do filme – “The House that Jack Built” – lembra o de uma animação francesa de 1968 (“La Maison de Jean-Jacques”, premiado mundialmente, ganhou exatamente o mesmo título em sua versão americana), que retrata um homem lutando contra as convenções sociais para deixar extravasar seu verdadeiro lado. Seria Jack apenas o personagem do filme? Ou uma metáfora para o próprio diretor?

 

Trailer oficial do filme