Junior Kamenach
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Jornalista, repórter do Sagres Online e apaixonado por futebol e esportes americanos - NFL, MLB e NBA

Redação Enem: falta de originalidade e argumentação ou rigor da banca? Professores analisam queda de notas mil

A queda expressiva na quantidade de redações que alcançaram a nota mil no Enem tem intrigado professores, alunos e especialistas em educação. Em entrevista ao Sistema Sagres, Rafael Bonifácio, professor de redação e especialista no exame, aponta que essa mudança reflete um novo modelo de correção adotado pela banca organizadora, que passou a priorizar a capacidade argumentativa e a autoria do candidato.

Para Bonifácio, a banca do Cebraspe — atual responsável pela avaliação das redações — se tornou mais criteriosa em relação às perspectivas argumentativas dos textos. “A queda das redações reflete principalmente um novo modelo de correção. Agora, a banca está mais incisiva dentro da perspectiva de validar a argumentação própria do aluno, garantindo os princípios de autoria”, explica.

Do mesmo modo, a professora de linguagens e redação do Sagres Educa, Flávia Freitas, aponta que um dos maiores desafios está na “Competência 3”, que avalia a capacidade de argumentação. “A nota mil é onde vejo o autor. É onde percebo que o estudante tem um projeto de texto, com introdução, desenvolvimento e conclusão que se comunicam com coesão e coerência”, explicou.

Ela defende que os alunos precisam ir além de citações decoradas de filósofos ou fatos históricos. “É necessário argumentar com base na leitura de mundo do próprio estudante, trazendo exemplos relevantes para a temática, o que tem sido cada vez mais raro”.

“Remodelação dos critérios”

Essa mudança tem um impacto direto na forma como os textos são avaliados. Embora as competências exigidas estejam claramente descritas no manual de redação do Enem, divulgado pelo Inep, houve uma “remodelação dos critérios”, com ênfase na originalidade e na capacidade de resolver os problemas propostos. “O modelo pronto, muitas vezes repassado em redes sociais ou cursos preparatórios, não é mais suficiente para garantir uma boa nota”, alerta o professor.

Para a professora, a internet, que deveria ser uma ferramenta para ampliar o acesso à informação, tem gerado uma leitura rasa. “Esse acesso à internet que deveria facilitar nossas vidas, permitindo um sócio-cultural mais robusto, acabou trazendo uma leitura superficial em todos os âmbitos”, afirmou. Essa falta de profundidade compromete a capacidade de os estudantes apresentarem opiniões críticas e bem embasadas em suas redações.

Flávia destaca também a influência negativa dos modelos pré-formatados de redação que circulam amplamente online. “Os alunos acham que, para tirar nota mil, precisam decorar um modelo pronto, desde a introdução até a conclusão, o que impede a expressão de um projeto de texto autoral”.

Ela também mencionou que o rigor nas correções contribui para a queda das notas mais altas. “As bancas estão mais criteriosas. Por exemplo, podem exigir que um aluno use períodos compostos para atingir os níveis mais altos ou penalizar o uso excessivo de vocabulário próximo da oralidade”, explicou.

Impactos do contexto pós-pandemia

Outro fator apontado por Bonifácio é o impacto da pandemia de Covid-19 na formação dos estudantes. “A transição para o ensino remoto afetou sensivelmente a habilidade crítica e a escrita dos alunos. No ensino remoto, o feedback sobre os textos produzidos era, muitas vezes, parcial ou inexistente, o que prejudicou o desenvolvimento dessas habilidades”, ressalta.

Segundo ele, a falta de estímulo à produção textual, tanto no ensino fundamental quanto no médio, também contribuiu para o baixo desempenho. “Os alunos escrevem, mas não compreendem a intencionalidade daquilo que estão produzindo. Eles não entendem o porquê do processo escrito”, critica. Essa falta de clareza e de compreensão sobre a utilidade da escrita reflete-se nas notas.

De acordo com Flávia, o isolamento e o ensino remoto intensificaram o uso da internet e ferramentas de inteligência artificial, o que contribuiu para a falta de autonomia dos estudantes. “Os alunos passaram a depender das ferramentas digitais para produzir textos, copiando e colando conteúdos sem desenvolver uma leitura crítica ou opinião própria”, afirmou.

A pandemia também afetou a confiança dos alunos em suas próprias habilidades. “Eles não confiam no que escrevem ou nas conclusões que tiram. Preferem aceitar o que os outros dizem e utilizam ferramentas apenas para reproduzir conteúdos”, disse.

O papel do professor e a ressignificação da prática pedagógica

Na visão de Bonifácio, é essencial que os professores de redação ressignifiquem suas práticas pedagógicas. “Não basta ensinar gêneros textuais. É preciso estimular o senso crítico do aluno e mostrar como ele pode produzir textos que sensibilizem a sociedade ou gerem reflexão sobre problemas contemporâneos”, afirma.

Para isso, ele defende a incorporação de estratégias de ensino que promovam o pensamento crítico e a compreensão da intencionalidade da escrita. “A produção textual precisa ser colocada na disciplina do aluno com um objetivo claro. Os professores devem ajudar os alunos a entenderem que vivem em uma sociedade cheia de problemas e que suas redações podem propor soluções para esses desafios”, destaca.

Apesar das críticas, Flávia vê o ensino remoto como uma ferramenta positiva para o ensino de redação. “Eu gosto muito do ensino remoto para redação. Ele permite corrigir textos junto com os alunos, fazer pesquisas em tempo real e preencher lacunas na argumentação”, afirmou. No entanto, ela alerta para o mau uso das ferramentas digitais, que pode reforçar a superficialidade na escrita.

Para Flávia, o maior problema não é o ensino remoto, mas sim a falta de incentivo ao desenvolvimento do processo argumentativo desde cedo. “Antes de ensinar a estrutura de uma dissertação, é fundamental ensinar os alunos a darem opinião, a justificarem seus argumentos. Isso deve ser feito desde a infância, em questões simples do dia a dia”, concluiu.

Temas desafiadores e atuais

Outro ponto levantado pelo professor é a escolha dos temas das redações. Ele acredita que os temas precisam tirar os estudantes de sua zona de conforto e ser desafiadores. “Muitas vezes, os temas não cumprem essa função. A redação está intimamente ligada à atualidade, e os temas precisam refletir as questões do presente”, analisa. Para ele, a discussão e a compreensão de temas atuais são fundamentais para que os alunos produzam textos de qualidade.

Para Flávia Freitas, essa diminuição não reflete somente uma piora na produção textual dos estudantes, mas sim uma maior rigidez nos critérios de avaliação. “A prova, em si, não mudou nas últimas décadas. O que mudou foi o rigor da banca examinadora, que se tornou mais criteriosa em aspectos como a pertinência do repertório sociocultural apresentado”, explica Flávia.

Segundo ela, a “Competência 2”, que avalia o uso desse repertório, tem exigido mais dos candidatos. “Antes, uma simples citação podia garantir um bom desempenho. Hoje, ela precisa estar diretamente relacionada ao tema e contribuir para o desenvolvimento do parágrafo”, afirma.

Flávia acredita que os assuntos estão mais acessíveis, mas o vocabulário utilizado pode assustar os candidatos. Ela citou como exemplo o tema de 2021, “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”. “A frase tática continha palavras como ‘invisibilidade’, que muitos não compreenderam de imediato. Mas o assunto em si era simples. Bastava entender que, sem registro civil, a pessoa não ‘existe’ oficialmente”, disse.

Queda nas notas mil, mas melhora geral

Apesar da redução no número de notas mil, a professora ressalta um dado positivo: a diminuição das redações zeradas. “Quase não temos mais notas zero desde 2015. Isso indica que os estudantes estão desenvolvendo melhor suas habilidades de leitura e interpretação, mesmo que ainda faltem alguns aspectos para atingir a nota máxima”, pontua.

Professor Rafael Bonifácio | Foto: Reprodução/Redes sociais)

Flávia também destaca que a prova de redação do Enem é estruturada para avaliar cinco competências. Embora esses critérios não tenham mudado, o alinhamento da banca corretora pode tornar a avaliação mais exigente. “Isso não significa que o aluno piorou, mas que os critérios de análise estão mais rigorosos”, reforça.

Em um cenário de mudanças nos critérios de avaliação, Bonifácio reforça a importância de estimular os estudantes a mostrarem sua autoria e capacidade argumentativa. “O que a banca espera do candidato é que ele apresente, em um texto dissertativo-argumentativo, soluções para os problemas apresentados, demonstrando pensamento crítico e uma compreensão profunda do tema”, conclui.

A importância da leitura e da cultura

Outro ponto levantado por Bonifácio é o papel da leitura no desempenho dos estudantes. Ele observa que o hábito de leitura em casa é um fator relevante, mas não exclusivo, para formar bons escritores. “Se o estudante é estimulado em casa a ler desde cedo, ele vai conseguir despertar um senso crítico muito maior. No entanto, mesmo quem não tem esse estímulo pode ser incentivado pela escola”, afirma.

Ele também ressalta a importância de aproximar o material de leitura da realidade dos alunos. “Uma grande briga que nós temos enquanto profissionais da área de linguagem é esse estímulo à leitura. Estimulamos os alunos a lerem clássicos do nosso tempo, mas esquecemos o contexto deles”, critica.

Para Freitas, uma das principais causas é a terceirização do ensino da argumentação. “O professor de redação tem muita responsabilidade sobre o declínio da nota mil, porque ele impõe modelos prontos, vendidos por startups ou infoprofessores, ao invés de ensinar o estudante a pensar o processo argumentativo”, afirmou.

Redes sociais: vilãs ou aliadas?

As redes sociais também foram mencionadas como um elemento ambíguo. “Elas funcionam como um mecanismo de posição de opinião, o que é positivo para desenvolver habilidades argumentativas”, reconhece Bonifácio. No entanto, ele alerta para os riscos de discursos desrespeitosos ou carentes de embasamento. “Cabe ao professor e ao estudante compreender os impactos positivos e negativos desse meio”.

Sobre o impacto do modelo de ensino e do contexto social no desempenho dos estudantes, Flávia aponta para as mudanças trazidas pela tecnologia. “As ferramentas digitais são facilitadoras, mas também incentivam a preguiça intelectual. Muitos estudantes usam esses recursos para plagiar, em vez de desenvolver um aprendizado efetivo”, critica.

Ela ainda acredita que a sociedade, de forma geral, tem influenciado o comportamento dos jovens dentro das salas de aula. “Os adolescentes de hoje têm menos interesse em construir um conhecimento autônomo. Apenas uma minoria entende a importância da produção textual como ferramenta para o futuro”, lamenta.

Para ela, o impacto tem sido negativo. “As redes sociais poderiam ser uma excelente ferramenta para debater e argumentar. Mas, em vez disso, vemos apenas opiniões sendo compartilhadas sem embasamento. O processo argumentativo fica falido, dando lugar a fake news e ideologias sem fundamento”, afirmou.

Inteligência artificial: ferramenta ou obstáculo?

Professora Flávia Freitas | Foto: Reprodução/LinkedIn

A crescente utilização de inteligências artificiais, como o ChatGPT, também foi mencionada. Segundo Flávia, muitos alunos recorrem a essas ferramentas de forma inadequada, usando-as para copiar conteúdos em vez de aprimorar suas habilidades.

“Isso faz com que eles não desenvolvam uma leitura crítica e um processo argumentativo próprio. Precisamos ensinar os estudantes a usarem essas ferramentas como aliadas, não como substitutas do pensamento crítico.”

Base essencial

Um dos fatores que impactam diretamente a formação escrita é “Literacia Familiar”, ou seja, a cultura de leitura desenvolvida dentro de casa, antes mesmo da alfabetização formal. “A falta de literácia familiar é o que mais influencia negativamente na leitura, interpretação e produção de texto”, explica.

Segundo ela, quando crianças são expostas precocemente à leitura — seja ouvindo histórias ou vendo os pais lerem —, desenvolvem um prazer natural por livros, essencial para sua formação crítica e autoral.

“Uma criança que cresce rodeada de livros terá mais facilidade em interpretar textos, fazer intertextualidade e criar narrativas. Já aquelas que consomem apenas conteúdos como desenhos animados ou redes sociais têm dificuldades em compreender textos mais complexos, que exigem referências culturais e interpretações múltiplas.”

Projetos interdisciplinares

Outro ponto destacado pela professora é a importância de projetos interdisciplinares na educação. “Um projeto que integra disciplinas como Biologia, Química, Geografia e História para discutir o meio ambiente, por exemplo, contextualiza o estudante e amplia sua compreensão de mundo”, diz Flávia.

Para ela, atividades como oficinas temáticas e mesas redondas são eficazes, mas precisam ser desenvolvidas ao longo do ano, e não apenas às vésperas do vestibular. Ela também alerta para a necessidade de trabalhar o prazer pela escrita em todos os gêneros textuais, não apenas no argumentativo.

“Abandonar a narração durante o ensino médio é perigosíssimo. A narração é muito autoral e ajuda o estudante a construir confiança como escritor. Esse processo é essencial para que, mais tarde, ele consiga desenvolver um texto argumentativo com fluidez e propriedade.”

Caminhos para a mudança

Para reverter o cenário, a professora acredita que é fundamental resgatar o prazer pela leitura e escrita e investir em um ensino que priorize a autonomia do estudante. “Ensinar o processo argumentativo é essencial. Os alunos precisam aprender a emitir opinião de modo crítico e estruturado. Isso significa que, ao escrever, eles devem confiar em sua própria voz e construir argumentos com base em exemplos, dados e citações, mas sempre partindo de suas próprias ideias.”

Flávia finaliza com um chamado aos professores: “Essa é uma oportunidade para refletirmos sobre nossa prática pedagógica e voltarmos a valorizar o processo autoral dos estudantes. Precisamos capacitá-los a serem escritores confiantes, capazes de interpretar o mundo e argumentar sobre ele com propriedade.”

Soluções para reverter o cenário

Para melhorar o desempenho nas redações, o professor sugere uma abordagem integrada entre família e escola. “A produção de texto deve ser estimulada com sentido e intencionalidade”, explica. Ele também defende a implementação de projetos interdisciplinares, que colocam os alunos diante de contextos significativos para a leitura e escrita. “Esses projetos funcionam muito bem quando realizados com zelo”, afirma.

Outro ponto crucial é o papel do professor de redação. Bonifácio acredita que a solução não está em modelos prontos, mas em estratégias que desenvolvam a capacidade argumentativa. “O professor de redação precisa refletir e buscar abordagens novas. Não é um modelo pronto que vai sustentar a nota mil do aluno, mas sim a capacidade argumentativa construída dentro da sala de aula”, conclui.

Entre as soluções sugeridas, Flávia defende o uso de eixos temáticos no ensino. “Não gosto de modelos prontos, mas também não sou radical. Eu organizo o ensino por temas gerais, como educação, saúde, tecnologia, direitos humanos e meio ambiente. Assim, os estudantes aprendem a argumentar a partir de uma base ampla e conseguem adaptar seus conhecimentos a temas específicos”, explicou.

Proposta

Segundo Bonifácio, “os alunos precisam compreender o impacto da produção de texto dentro dos processos seletivos”. No caso do Enem, a redação segue o formato de dissertação argumentativa, na qual o candidato deve discutir um problema social brasileiro e propor uma intervenção para minimizá-lo. Ele destaca que “compreender o que a banca espera com a produção de texto é fundamental para alinhar o conteúdo produzido aos critérios avaliativos”.

O professor alerta para a armadilha de modelos prontos de redação, frequentemente adotados por estudantes. “Um aluno vai adotar o modelo pronto porque é mais fácil e prático, mas a banca quer justamente o contrário: que ele desenvolva uma capacidade argumentativa que mantenha princípios de autoria”, explica Bonifácio.

Para a professora, o foco deve ser sempre o desenvolvimento do pensamento crítico e da argumentação. “Ensinar o aluno a pensar e defender suas ideias é muito mais importante do que levá-lo a decorar modelos. O objetivo não é apenas passar no Enem, mas prepará-lo para a vida”, concluiu.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 04 – Educação de Qualidade

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