Norberto Salomão
Norberto Salomão
Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Professor de História, Analista de Geopolítica e Política Internacional, Mestre em Ciências da Religião e Especialista em Mídia e Educação.

Rússia: As origens da implacável geopolítica de Putin

O geógrafo e acadêmico inglês Halford John Mackinder, que viveu entre os séculos 19 e 20, é considerado um dos fundamentadores das teorias sobre geopolítica e geoestratégia. Em 1904, ele apresentou à Real Sociedade Geográfica de Londres um artigo intitulado “The Geographical Pivot of History” (O Pivô Geográfico da História), no qual desenvolveu a Teoria do Heartland (Teoria do “Coração” da Terra).

O referido Heartland estaria caracterizado pela faixa territorial euroasiática, compreendendo a parte europeia da Rússia, a Ásia central e, ao Norte, as planícies da Sibéria. Assim, abrangeria do rio Volga ao rio Yangtzé (rio Azul) e da cordilheira do Himalaia até o Ártico.

Halford John Mackinder.

Segundo o cerne da Teoria de Mackinder, essa vasta região, que possui grande quantidade e diversidade de recursos naturais, por ocupar grande parte da massa continental euroasiática estaria, de certa forma, protegida contra as investidas militares de potências marítimas. Assim, quem controlasse a região do Heartland se constituiria em uma espécie de potência anfíbia, que a partir da terra controlaria estratégicas saídas para o mar.

Portanto, segundo esse geógrafo inglês, essa região se constituiria como uma World Island (Ilha do Mundo) e quem a dominasse definiria os destinos da geopolítica mundial. Por isso, no início do século 20, ele já advertia para o perigo representado pela Rússia, à época Czarista.

Pois bem, ao longo da história essa região foi disputada por vários povos e dificilmente foi controlada, em sua total extensão, por um Estado. A Exceção foram os controles exercidos pelo Império Czarista Russo, nos séculos 18 e 19, e depois pela URSS, entre 1923 e 1991.

O fato é que a teoria de Mackinder foi aplicada à composição de várias concepções culturais e geopolíticos, mas quero destacar, inicialmente, a influência dessa teoria na construção da concepção russa do Eurasianismo.

O Eurasianismo foi um movimento político desenvolvido na década de 1920 por membros da chamada “emigração branca”, termo utilizado para designar emigrantes russos que fugiram durante o período de implantação da Revolução socialista, entre 1917 e 1921. Esses membros, apesar de não apoiarem integralmente o regime soviético viam-no como um fio condutor para a construção de uma nação euroasiática que dominaria a faixa territorial do Heartland. Contudo, a partir da década de 1930 essas ideias foram sendo diluídas e perderam sua capacidade de mobilização, talvez, em grande parte, pelo autoritarismo e repressão do Estado soviético.

Porém, no processo de declínio e dissolução da URSS esse e outros ideais de identidade nacional eslava foram resgatados e adaptados. Assim, tendo como principal teórico Alexander Dugin, desenvolveu-se o neo-eurasianismo. A teoria de Dugin tem sido caracterizada por realizar uma inusitada combinação entre elementos do comunismo, do fascismo, do ecologismo e do tradicionalismo.

Alexander Dugin. (Foto: Wikipédia)

Esse cientista político russo, que vem sendo classificado como fascista, se opõe ao liberalismo e a influência cultural ocidental estadunidense. Ele defende a importância da religião e da Igreja na construção de uma “sociedade russa sólida e patriótica”. Tanto em sua obra “Fundamentos da Geopolítica”, publicada em 1997 e listada na bibliografia da Academia Militar do Estado Russo, quanto no artigo, publicado no mesmo ano, sob o título de “Fascismo – Sem Fronteiras e Vermelho”, defende a afirmação de um fascismo “à moda russa” e fundamenta a ideia da construção de um “império russo euroasiático”, que seria o único com competência para combater e destruir a “nociva influência” da cultura ocidental estadunidense.

Apesar de muitos analistas contestarem a influência das ideias de Alexander Dugin na geopolítica do governo Putin, a verdade é que elas estão bem disseminadas entre os setores militares e burocráticos do governo.

Dugin não apoia as diretrizes econômicas do governo Putin, contudo é um firme partidário de suas práticas no campo geopolítico e geoestratégico, considerando Putin indispensável para a viabilização de um “império russo euroasiático”. Nesse sentido, ele incentivou as ações da Rússia contra a Geórgia, em 2008, envolvendo os separatistas da Ossétia do Sul e da Abecácia.

Posteriormente, apoiou firmemente a guerra contra a Ucrânia e a anexação da Criméia, em 2014, bem como as ações russas de suporte militar aos insurgentes na região de Donbass, no leste da Ucrânia, em um conflito armado “sem fim” que envolve as forças separatistas das autodeclaradas Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk contra o governo ucraniano. Há informações, das agências de inteligência ocidentais, de que Dugin mantem contato constante com insurgentes ucranianos separatistas pró-Rússia.

Todavia, não seria correto afirmar que Putin segue à risca a cartilha de Dugin, mas que há pontos de convergência em relação à ideia de estabelecer o domínio russo sobre a “Ilha do Mundo”, ou seja, há uma linha teórica concreta que respalda, ou pode ser utilizada para respaldar, a implacável geopolítica implementada por Putin.

Por exemplo, no campo econômico a proposta Neo-eurasiana, defendida por Dugin, prescreve que a economia deve estar subjugada aos interesses gerais do Estado. Nesse sentido, observamos a convergência dessa diretriz com as práticas adotadas pela dupla Putin-Medevedev, que implementaram em seus governos medidas que foram fundamentais para a suplantação do programa privatizador, conduzido durante o governo Yeltsin, por meio de uma gradual e seletiva centralização administrativa que passou a incentivar o controle do Estado sobre áreas estratégicas da economia. A ideia, com a implantação dessas medidas era restabelecer a estrutura econômica interna e garantir uma relativa liberdade em relação aos fatores econômicos externos.

A partir de então, o governo Putin avançou em ambiciosos objetivos de política econômica, envolvendo o incentivo ao setor energético, inclusive com o desenvolvimento em pesquisas para a produção de combustíveis alternativos; forte investimento estatal no setor médico-farmacêutico; estímulos para a retomada do desenvolvimento cibernético, aeroespacial, militar e das telecomunicações.

No campo geopolítico, Putin tem atuado em duas frentes fundamentais: A diplomática, pautada em acordos multilaterais e o fortalecimento militar efetivando inclusive práticas de intervenções diretas e indiretas sobre as áreas que considera ser de sua influência, ou seja, de certa forma retoma-se a ideia do domínio do “império russo euroasiático” sobre o território Heartland.

Dessa forma, a lógica geopolítica de Putin para consolidação da Heartland baseia-se na retomada da área de influência que outrora constituiu o espectro do domínio soviético e, dessa maneira, permitir que a Republica Russa assuma uma posição de protagonismo na política internacional.

Vladimir Putin. (Foto: Reprodução/Facebook)

Com o fim da URSS, os EUA e a União Europeia buscaram garantir um certo isolamento e enfraquecimento da política externa russa. Todavia é inegável que com Putin, o jogo tem mudado. Valendo-se de acordos multilaterais com parceiros variados, a Rússia não só se inseriu em vários organismos internacionais, como tem proeminência em alguns deles.

Só para citarmos, é importante destacarmos a participação russa no Acordo de Cooperação de Xangai, na Organização do Tratado de Segurança Coletiva, na Comunidade dos Estados Independentes (CEI), que se organizou sob a liderança da Rússia após a dissolução da URSS, na Comunidade Econômica Eurasiática, na Organização do Tratado de Segurança Coletiva e no BRICS. Claro que convém lembrar que a Rússia é um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Por outro lado, as ações militares da Rússia na Geórgia, na Síria, na Ucrânia e, mais recentemente, no Cazaquistão, demonstram que a sua política externa não se resume ao campo meramente diplomático.

Dessa forma, a atual crise na fronteira com a Ucrânia, que pode levar a um conflito armado de grandes proporções na região e afetar o mundo, não é um mero capricho de um “tirano”, trata-se de uma perspectiva muito bem engendrada de “renascimento da Rússia” como agente determinante na política internacional e que, sem dúvida, passa pela consolidação de seu poder sobre a região euroasiática e a retomada do ideal de domínio sobre a Heartland.

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