Mensalmente, a rede básica de saúde mental no Estado de Goiás atende uma média de 40 mil pessoas em 41 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) espalhados por suas 17 regionais de saúde. Até o final de 2014, a proposta é de expandir esta rede para 55 novos Caps. O problema é que, atualmente, cerca de 140 mil goianos portadores de transtornos mentais severos e persistentes estão excluídos do serviço. A realidade é replicada, quando se reduz geograficamente o universo estatístico.
Goiânia, por exemplo, tem sete Caps e realiza, ao mês, aproximadamente sete mil atendimentos. O problema é que o Ministério da Saúde calcula que na capital exista uma população de transtornados crônicos próxima a 36 mil pessoas. Outro problema é que apenas 2.057 leitos estão disponíveis na rede pública para a saúde mental – em Goiás, 1.278 leitos, sendo 1.228 na rede conveniada, 38 nos hospitais gerais (Materno Infantil, Nossa Senhora de Lourdes, Hurso, HGG, Hospital Ernestina Lopes, em Pirenópolis) e 12 leitos no CAPS III, em Aparecida de Goiânia; em Goiânia 779 leitos, em um dos sete hospitais psiquiátricos.
Quando se conhece o modelo ideal de atendimento, constata-se que uma dúzia de anos se passou e a reforma manicomial ainda está por ser implantada. A ordem do Ministério da Saúde é que nenhuma pessoa com transtorno mental, no âmbito público, seja tratada longe dos olhos e do coração da sociedade. Nada de manicômios e isolamento. Apesar da proposta, Goiânia tem apenas cerca de 55% do projeto sedimentado. Goiás, por sua vez, patina nos 50%.
Modelo Nicarágua
O tratamento sob o manto de respeito à cidadania do doente sugere ser mais uma saída para deficiência estrutural da administração pública do que um conceito cientificamente proposto. Mesmo assim, os dirigentes públicos da saúde mental continuam advogando a tese de que conviver com um esquizofrênico, um bipolar, ou mesmo, um depressivo é a mesma coisa do que partilhar o espaço com um cardiopata, hipertenso ou diabético.
O psiquiatra Salomão Rodrigues garante que o atual modelo, implantado pela Lei Antimanicomial, em 2001, implantou apenas um modelo psiquiátrico precário, cronificante, que exclui o médico e não reconhece a doença mental. “O atual modelo é parecido com o existente antes do surgimento dos medicamentos, copiado da Nicaragua e é aceito pelo governo por ver nele apenas economia”, redargui Rodrigues, que é o presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremego).
A gerente da Saúde Mental de Goiânia, Heloiza Massanaro, garante que o atendimento continuado e qualificado do paciente depende de uma melhoria na capacitação dos profissionais, que precisariam estar mais interligados, compreendendo a função de cada um na rede. “A internação deve acontecer por tempo determinado e em casos claros de contenção e estabilização”, contrapõe Massanaro, que comandou a 9ª Regional do Conselho Regional de Psicologia por duas vezes, de 2004 a 2010.
Ampliação da rede
Para a dirigente municipal, a implantação do atual modelo antimanicomial não está centrada na questão econômica, mas na promoção dos direitos de transtornados e familiares, incentivando a participação no cuidado. O intenso fluxo no Pronto Socorro Wassily Chuc, porém, não revela uma aceitabilidade ao novo modelo. A grande maioria dos que chegam à unidade visam internação. Massanaro contesta, adiantando que o local é termômetro de demanda reprimida.
“Ainda este ano, Goiânia contará com dois Caps III (atendimento 24 horas), sendo um voltado para Alcool/Droga (Caps AD) e outro para transtornados mentais. O Caps Novo Mundo está quase pronto e passará a funcionar em regime de 24 horas. Está aprovada a implantação de um Caps AD (ácool e drogas), na Região Norte (Gentil Meirelles), dentro do programa Anicuns-Macambira. A meta é iniciar a construção. Precisamos implantar mais duas residências terapêuticas (SRT)”, anuncia Massanaro.
A posição de Massanaro é apoiada pela diretoria do único pronto socorro psiquiátrico do Estado, o Wassily Chuc, a também psicóloga e ex-presidente da 9ª Região do CRP (1995/1998), Carmem Rodrigues Paulino. “A mudança tem por objetivo humanizar o tratamento e alterar a lógica terapêutica. O objetivo da reforma é tratar dos portadores de transtornos mentais. O tratamento junto com a família é um aprendizado. O problema é que a sociedade, ao longo do tempo, aprendeu a segregar socialmente os que apresentavam debilidades mentais. Reaprender a conviver leva tempo e disposição”, defende Paulino.
Djanira Rodrigues Barbosa concorda em parte a proposta conceitual da reforma do sistema psiquiátrico. Depois de gastar 14 horas, para percorrer 525 quilômetros, entre Posse (NE Goiano) e Goiânia, a dona de casa buscava, na última semana, um tratamento sério para a sua irmã, Maria Zizélia Rodrigues. Diagnosticada por um clinico geral, em sua terra, com portadora de depressão, Maria Zizélia nunca foi avaliada por psiquiatra.
Atendida na Asmigo, Djanira foi aconselhada a se dirigir ao Wassily Chuc, porta de entrada do sistema de saúde mental em Goiânia, onde deveria pleitear uma internação para irmã, até a sua estabilização. “Não temos a menor assistência para este caso na minha região. Minha irmã mora com a minha mãe e faz dez dias que só quer beber leite. Ela emagreceu quase quatro quilos. Minha mãe está chorosa. Temos que conseguir que ela fique internada, até que o remédio comece a agir corretamente. Só aí podemos voltar com ela pra casa. Precisamos, também, saber se o que ela tem é depressão. Mas prá isso precisamos de um médico de verdade”, desabafa a dona de casa.
Pacientes enganados Especialista em transtornados infanto-juvenis, o psiquiatra Marcelo Caixeta adverte se revelar cético com a qualidade da rede básica de saúde mental. Dirigente da Asmigo, um hospital psiquiátrico nos moldes de uma ONG, com 30 leitos e voltado para o público infanto-juvenil, Caixeta denuncia que o serviço público de saúde mental, nas diversas esferas federativas, é mantido, em sua grande maioria, por profissionais não-médicos. Uma situação que tem resultado em diagnósticos e tratamentos equivocados.
Para validar a assertiva, Caixeta revela que dos quase dois mil laudos revistos por ele, anualmente, como perito da Justiça Federal, cerca de 95% estão errados e, consequentemente, com o tratamento errados. “O serviço público não quer o médico, por questões coorporativas e salariais. Há uma contenda sub-reptícia no sistema público, onde o único perdedor é a comunidade assistida. O sistema público de saúde mental é hostil ao psiquiatra, em especial nos Caps”, conta o psiquiatra.
Salomão Rodrigues apoia a denúncia de Caixeta, adiantando, ainda, que o atual modelo, o qual ele rotula por capscêntrico, pois teria o Caps como pedra basilar, exclui o médico na assistência do doente mental dentro do sistema público. “O grande hospital dos doentes mentais da rede pública é o presídio e as ruas de Goiânia com uma grande parcela de seus moradores”, assevera o dirigente classista.
Atenção holística
A gerente do setor de saúde mental do Estado, psicóloga Luciana Martins, discorda dos psiquiatras, adiantando que o médico continua sendo essencial, mas não determinante. Ela argumenta que a pedra angular da reforma é o conceito de saúde defendido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Nela, um indivíduo teria saúde caso sua condição bio-físico-psicológica estivesse em equilíbrio.
“Saúde não é ausência de doença. É uma visão reducionista do ser humano. Os Caps, assim como os demais serviços disponibilizados pela rede, estão inseridos numa proposta de fortalecimento aos seus usuários e familiares. É uma maneira, também, de romper as barreiras do preconceito e dos estigmas”.
Estado e Goiânia concordam que os manicômios são páginas quase viradas. Os resíduos humanos produzidos pelo modelo asilar estão dispersos por 13 unidades, chamadas de Casas Terapêuticas (oito mantidas pelo Estado e cinco pela Prefeitura de Goiânia). A grande maioria dessa população, composta por 91 pessoas, é oriunda do Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho, fechado em 1997, depois de funcionar por 43 anos.
Antipsiquiatria
Os transtornos mentais, como a depressão, o transtorno bipolar, a esquizofrenia, a demência e os transtornos de ansiedade, são descritos por suas características patológicas, ou psicopatologia. Muitas doenças psiquiátricas, ainda, não têm cura. Enquanto algumas têm curso breve e poucos sintomas, outras são condições crônicas que apresentam importante impacto na qualidade de vida do paciente, necessitando de tratamento em longo prazo ou por toda a vida. São os casos considerados severos e persistentes. A efetividade do tratamento também varia em cada paciente.
As práticas de internamento da loucura possuem uma história. A partir de 1650, o mundo da insanidade se tornou o mundo da exclusão. Por toda a Europa, a prática da internação era uma medida de assistência social, sem vocação médica alguma. Até o início do século 19, a segregação visava apenas reestruturar o espaço social. Nos 200 anos seguintes, criou-se hospital psiquiátrico, tendo por marco a luta do médico francês Philipe Pinel. Nascia a era da prevalência do campo médico. A pessoa tornou-se paciente e a terapia era a do isolamento. Aliás, o princípio era o mesmo aplicado às bactérias.
A partir da década de 1950, ocorrem os avanços psicofarmacos (Amplictil, em 1952, e o Haloperidol, em 1957), da psicanálise, e outros tipos de possibilidade de intervenção. As condições de confinamento asilar dos manicômios psiquiátricos passaram a ser contestadas e denunciadas ao longo da década de 1960. Travou-se uma luta continua para libertar os loucos da condição subanimal em que viviam. Em 1967, o psiquiatra sul-africano David Cooper, cunhou o termo ‘antipsiquiatria’, que criticava e desafiava as teorias e práticas fundamentais da psiquiatria tradicional.
A antipsiquiatria inspirou mudanças significativas na psiquiatria e na origem de outros movimentos, como o orgulho autista. No Brasil, ela está na raiz da reforma psiquiátrica. Atualmente, a doença mental não é nem chamada de doença porque não se sabe o que é. A classificação pela Organização Mundial da Saúde é de transtorno mental, exatamente porque não se classifica como uma doença.