A edição desta quarta-feira (29) do programa Educação em Pauta da Sagres TV, o tema foi a inclusão de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) na educação. O debate partiu dos dados inéditos do Censo 2022 do IBGE, que pela primeira vez contabilizou pessoas com autismo no Brasil, totalizando 2,4 milhões de indivíduos.
O número, ainda considerado subestimado por especialistas, traz à tona a necessidade de políticas públicas mais eficazes na área da educação. A convidada especial do programa, Cleide Pires Machado — especialista em educação especial e professora do Instituto Federal de Goiás (IFG) — destacou a importância da inclusão dos dados no Censo.
“Que bom que pela primeira vez mapeou, porque a gente estava entendendo que a gente era subnotificado, mas a gente não sabia a dimensão disso”, afirmou. Segundo ela, comparando com estatísticas internacionais, especialmente dos Estados Unidos, o número no Brasil deveria se aproximar de sete milhões de pessoas com autismo.
A identificação precoce foi um dos pontos centrais da discussão. Para Cleide, detectar sinais do espectro antes dos três anos de idade é fundamental. “Se a gente não identifica essas crianças, a gente também não tem políticas para atender essas crianças, que é o que tem acontecido no Brasil”, pontuou.
Ela alertou que muitas crianças não recebem diagnóstico no tempo certo, o que compromete diretamente o desenvolvimento. “A não identificação agrava o quadro, porque perdemos momentos cruciais de desenvolvimento neurológico.” Outro aspecto abordado foi o papel das escolas na identificação do autismo.
Para Cleide, o processo não deve ser responsabilidade exclusiva do professor. “Toda a comunidade tem que estar preparada para ver os sinais e também para pensar soluções”, defendeu. Ela citou como exemplo crianças com seletividade alimentar, que exigem da merendeira atenção específica quanto à textura, sabor ou temperatura dos alimentos.
Ainda assim, a especialista reconhece que há barreiras estruturais. “Tem pessoas que querem muito se preparar, mas não têm tempo, apoio da gestão escolar, ou condições financeiras”, apontou. Cursos de especialização, segundo Cleide, muitas vezes demandam investimento próprio dos educadores — o que se torna inviável diante dos baixos salários.
“Existe toda uma situação que a gente precisa de ter uma generosidade para entender que não é só porque o professor não quer se formar.” O programa destacou a importância de políticas públicas eficazes e investimento na formação continuada dos profissionais da educação. “Quanto mais informação, mais a gente consegue intervenção. Isso é bem importante”, concluiu Cleide.
A edição reforçou que a inclusão não é apenas uma diretriz pedagógica, mas um compromisso social que começa com o reconhecimento da diversidade e passa pela ação concreta de toda a comunidade escolar.
Apesar dos avanços no acesso de crianças e adolescentes com autismo à educação, a inclusão real dentro das salas de aula brasileiras ainda é um desafio, segundo Cleide. Para ela, a matrícula por si só não garante a aprendizagem e, muitas vezes, nem mesmo o convívio social.
“Ela só é matriculada por cumprimento da lei, e dentro da escola pode ser segregada. Vai para a ‘salinha da criança’ para brincar de massinha ou ficar quietinha, enquanto os demais estão aprendendo.” A professora destaca que, no passado, crianças com deficiências eram escondidas até mesmo pelas famílias.
Hoje, embora o acesso à escola tenha aumentado, a formação dos educadores e a estrutura das instituições ainda não acompanham essa realidade. “Os professores que ainda resistem a receber crianças com algum tipo de condição precisam se preparar, porque essa é uma realidade — felizmente. Precisamos pensar no futuro dessas crianças, na autonomia e independência delas.”
Cleide também chama atenção para estudantes autistas que chegam ao ensino médio sem terem sido alfabetizados. “Estamos recebendo alunos no ensino médio que ainda não foram alfabetizados. Eles foram apenas empurrados de uma série para outra. E o professor do ensino médio se vê sem ferramentas para ensinar, porque tudo depende da leitura e da escrita.”
Ela critica ainda a lógica escolar baseada apenas em dois tipos de inteligência — linguística e lógico-matemática —, o que marginaliza outras formas de aprendizagem. “Todo mundo tem habilidade. Todo mundo pode aprender. Mas nós aprendemos em velocidades diferentes. Se a criança não está aprendendo, a falha é no modo de ensinar.”
Outro ponto levantado foi a carência de profissionais de apoio capacitados. Muitas vezes, esses cuidadores, responsáveis por acompanhar os alunos com deficiência, não têm sequer formação técnica na área. “Eles vão apenas para limpar a criança. São cuidadores, não educadores. E isso é extremamente preocupante”, reforça Cleide.
A legislação brasileira, por meio do Plano Nacional de Educação (PNE), define diretrizes para a inclusão. A Meta 4 do plano prevê a universalização da educação para crianças e adolescentes com deficiência, com foco no atendimento educacional especializado. No entanto, a execução dessas diretrizes esbarra na ausência de investimentos, formação continuada e articulação entre educação, saúde e assistência social.
Outro entrave é a dependência do laudo clínico para a adaptação curricular. O novo PNE, ainda em discussão no Congresso Nacional, propõe a implementação de um Plano de Educação Individualizado (PEI) sem obrigatoriedade do laudo médico. Cleide concorda com essa medida: “Ter laudo é um privilégio. Um diagnóstico hoje custa entre R$ 2.500 e R$ 3.500. A maioria das famílias não tem acesso.”
Para a professora, o próprio docente pode e deve ser o agente de mudança. “O professor é quem está mais próximo da criança. É ele quem vê se ela está aprendendo ou não. Então, se identificou que não está, já é suficiente para adaptar o currículo e buscar um atendimento especializado.”
Ao finalizar sua fala, Cleide reforça que inclusão vai além do discurso. “A gente precisa parar de aceitar o acesso como se fosse suficiente. Inclusão só existe quando há aprendizado, convivência e respeito às individualidades. E isso só é possível com investimento, formação e empatia.”
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 04 – Educação de Qualidade
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