O Museu Ferroviário de Pires do Rio guarda parte da história goiana da concepção das cidades que formavam a “região da estrada de ferro”. Nele, estão preservadas as locomotivas a vapor e objetos da ferrovia dos séculos XIX e XX. Por causa de uma infestação de cupins, o prédio estava se deteriorando e correndo riscos de desabamento. Zelando pelo bem histórico, a Secretaria de Estado da Cultura (Secult) firmou um contrato com a Marsou Engenharia para restaurar o patrimônio goiano. O contrato, no valor de R$ 244 mil, entre a empreiteira e a Secult, foi assinado em outubro do ano passado. No entanto, em maio deste ano, um aditivo de 36% sobre o valor contratado elevou o custo da obra para R$ 350 mil. O que salta aos olhos é que todo este acordo não passou pelos trâmites legais do processo licitatório.
De acordo com a Secult, a emergência da situação não permitiu que um processo de concorrência fosse aberto. A pasta afirma que o telhado e parte das estruturas das paredes do prédio já estavam comprometidas por ações de cupins. Por nota, a assessoria de imprensa da Secult explicou que a dispensa de processos licitatórios é prevista na legislação. A Lei Federal de número 8.666/93 realmente estabelece, no artigo 24, a dispensa de certames. Porém, casos em que a concorrência não é obrigatória são situações de guerra, grave perturbação da ordem e emergência ou calamidade pública.
Marcos César Gonçalves, especialista em Direito Constitucional, não acredita que a restauração de patrimônios públicos seja um caso de dispensa de licitação, isto porque é previsível que prédios venham a se deteriorar. Especificamente no caso do Museu Ferroviário, o constitucionalista acredita na ilegalidade do contrato porque a infestação de cupins não surgiu instantaneamente, faltando, sobretudo, fiscalização por parte da administração. “As ações de cupins acontecem com o longo do tempo, eles não aparecem do dia para a noite e comem o prédio inteiro. Haveria tempo hábil para se realizar um processo licitatório. Se a situação chegou num ponto calamitoso do edifício correr o risco de desabar, é culpa da administração de não ter fiscalizado isso anteriormente. Ou, ainda, o erro pode ter sido proposital para que a circunstância chegasse a este ponto, fosse alegada a dispensa e realizada a contratação da empresa. Isso não é caso de dispensa, não se enquadra nas hipóteses da lei”.
Alternativas
As empresas que trabalham com restauração de prédios tombados têm uma característica diferente das demais. Em qualquer intervenção realizada em bens históricos são utilizadas as mesmas técnicas e métodos com que o edifício foi construído, para que sejam mantidos os traços originais do prédio. Embora a Marsou seja um nome forte no mercado goiano, há ainda outras empresas que atuam no setor de restauração e são credenciadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Depois da destruição do centro histórico da cidade de Goiás, causada pela enchente do Rio Vermelho em 2011, todo o patrimônio afetado teve de ser restaurado. A empresa contratada pelo Estado para executar as obras foi a, também goiana, Biapó, que em outra ocasião restaurou a Matriz do Rosário de Pirenópolis, incendiada em 2002. Além do Museu Ferroviário, a Marsou está restaurando mais dois prédios tombados pelo patrimônio histórico em Goiás: Centro Cultural Martim Cererê e Palácio das Esmeraldas.
Com as três obras, a empreiteira vai embolsar cerca de R$ 3,3 milhões do tesouro estadual. Deste total, R$ 2 milhões são referentes à restauração do Palácio das Esmeraldas. Inicialmente, a obra custaria R$ 1,4 milhão, mas em maio deste ano um aditivo no valor de R$ 715 mil foi acrescido ao contrato. As obras tiveram início em dezembro do ano passado, com previsão de término para junho deste ano. Porém, os serviços ainda se arrastam e com um novo prazo de entrega definido: novembro.
Direcionamento de edital
Dois meses atrás, a Rádio e o Portal 730 publicaram reportagem denunciando que o processo licitatório, na modalidade concorrência, para a contratação de empresa para reformar o Palácio das Esmeraldas teve a participação de apenas uma empresa: a Marsou Engenharia. Ano passado, a Secult também licitou as obras de restauração do Martim Cererê, que, coincidentemente, teve apenas a Marsou como participante do certame. A obra no centro cultural ficou orçada em R$ 344 mil, e também sofreu aditivação de R$ 132 mil. Afora o gasto milionário com o restauro dos dois últimos complexos, o que se sobressai é que ambos os contratos sofreram aditivos que beiram 50% sobre o valor contratado, o máximo permitido por lei, e tiveram a mesma e única empresa participante do certame.
Marcos César explica que o aditivo contratual é previsto em lei e deve estar predito também no edital. Contudo, são necessários argumentos admissíveis para que seja estabelecido este acréscimo financeiro ao contrato. Em caso de obras, por exemplo, a justificativa para o aditivo seria a alteração no preço de comércio dos materiais de construção. “É dever da empresa contratada provar, por meio de planilhas, o que foi alterado no mercado e que justifique esse acréscimo. Não é permitido, de forma alguma, que este aumento seja para suprir o valor inicial que, teoricamente, era deficitário”, esclarece.
O fato de a Marsou ser a única participante dos processos licitatórios realizados, tanto pela Secult, quanto pela Agetop, pode ser considerado um caso grave de direcionamento de edital. De acordo com o constitucionalista, são raros os certames que não haja muitos interessados em participar. Ele explica que os casos de vícios de edital são muito comuns e muitas vezes imperceptíveis. “Os vícios estão embutidos de maneira implícita na forma de exigências que são desnecessárias. Essas exigências acabam eliminando grande parte das empresas interessadas, direcionando o processo para uma determinada organização. É um conchavo entre a administração e a empresa interessada”.
Outra forma de direcionar um processo licitatório é a omissão. Neste caso, a administração, propositalmente, deixa de colocar certos pontos no edital para beneficiar uma empresa específica ou permitir brechas futuras durante a execução de contratos, aplicando os tais aditivos. “Quando um determinado objeto passa a ser vencido por uma única empresa, reiteradamente, isso é indício claro de direcionamento”, assegura o especialista.
Tanto a Secult como a Agetop não se dispuseram a responder as críticas de Marcos César Gonçalves.