Premiado com o Jabuti em 2021, “O Avesso da Pele” foi selecionado para integrar o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), sendo distribuído em escolas públicas em todo o Brasil. No entanto, uma parte dos alunos de Goiás, Paraná e Rio Grande do Sul não terá a oportunidade de explorar este livro em sala de aula.

Um comunicado da Secretaria de Estado da Educação de Goiás (Seduc-GO) ordenou a recolha de todos os exemplares para uma “análise”, alegando que “fará a leitura e análise com vistas a definir se o livro poderá ou não ser distribuído”. Mas qual é o motivo por trás dessa censura e o que “O Avesso da Pele” realmente aborda? [Confira nota da Seduc na íntegra ao final do texto]

A controvérsia em torno do romance de Jeferson Tenório teve início com a divulgação de um vídeo nas redes sociais, no qual a diretora de uma escola no Rio Grande do Sul questionou o governo federal pela distribuição de um livro com um “vocabulário de baixo nível”. É importante lembrar que a participação no PNLD é voluntária, e as escolas têm autonomia para escolher quais obras do programa desejam receber.

Seguindo a repercussão do vídeo, a Secretaria de Educação do Paraná optou por recolher os exemplares do livro para avaliação, argumentando que certos trechos, expressões, jargões e descrições de cenas de sexo podem ser considerados inadequados para menores de dezoito anos.

Enredo

“O Avesso da Pele” se passa em Porto Alegre (RS) e é narrado por Pedro, um jovem que acaba de perder o pai, Henrique, em um incidente envolvendo a polícia. Desde as primeiras páginas, Pedro explora o apartamento do pai em busca de pistas sobre sua vida, desvendando uma história interrompida de Henrique ao longo das quase 200 páginas do livro.

“Olho para tudo isso e percebo que serão esses objetos que vão me ajudar a narrar o que você era antes de partir. Os mesmos utensílios que te derrotaram e que agora me contam sobre você. Os objetos serão o teu fantasma a me visitar”, sentencia. Uma das temáticas centrais é o preconceito racial, vivido cotidianamente por pai e filho, tanto no ambiente de trabalho quanto em suas relações pessoais e nos confrontos com a violência policial.

Curiosamente, o protagonista do romance é um professor de Literatura que dedica seu tempo às escolas públicas. Assim, a narrativa aborda de forma contundente a deterioração do sistema educacional, as condições de ensino precárias e a desigualdade enfrentada por alunos e educadores. No entanto, o cerne da história reside, sem dúvida, na questão do preconceito racial.

Racismo

Pai e filho, ambos homens negros, lidam diariamente com o racismo, seja no ambiente profissional, nas interações pessoais ou ao enfrentarem a violência policial. A tragédia se desenrola quando Henrique, o filho, é brutalmente assassinado a tiros enquanto voltava para casa, ainda maravilhado e distraído com a aula que acabara de ministrar – uma rara ocasião em que os alunos demonstraram interesse genuíno.

[box]”[…] Você nem percebeu quando os reflexos vermelhos de uma sirene bateram na parede de um prédio próximo a você. Nem percebeu a aproximação de uma viatura da polícia, e também não percebeu quando eles param o carro ao seu lado. Você só se deu conta do que estava acontecendo quando um deles falou mais alto e disse para você parar. Era uma abordagem. Sua cabeça ainda estava na sala de aula, ainda estava em Dostoiévski. Ele gritou para você parar. Gritou para você ir para a parede. Mas você não escutou ou não quis escutar. Ele e os outros policiais estavam nervosos, era só para ser mais uma abordagem de rotina. Só isso, vamos, porra, colabora. Mas você não estava se importando mais com a rotina deles. Ele gritou novamente para você ir a parede, ele já estava apontando a arma. Mas para você já não fazia diferença, porque daquela vez eles não iam estragar tudo.”

Enquanto a diretora do Rio Grande do Sul e a Secretaria de Educação do Paraná argumentam que o vocabulário do livro não é adequado para estudantes do Ensino Médio, a avaliação do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) discorda. O livro faz parte das leituras obrigatórias de vestibulares, incluindo um dos mais desafiadores do país.

Além disso, outras universidades selecionam textos importantes da literatura brasileira para seus vestibulares, incluindo obras como “Poema sujo”, de Ferreira Gullar, que aborda temas como morte, fome e sexualidade sem rodeios.

Nota da Seduc na íntegra:

“A Secretaria Estadual da Educação está recolhendo o livro que chegou às escolas via escolha na relação de obras literárias aprovadas no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 2022 a ser utilizado a partir de 2023;

A orientação de recolhimento às coordenações regionais de Educação (CREs) tem a finalidade de possibilitar uma análise do livro quanto ao atendimento da proposta pedagógica da rede pública estadual de ensino;

A Seduc/GO fará a leitura e análise com vistas a definir se o livro poderá ou não ser distribuído. O objetivo é assegurar que a obra literária que chegue à escola possa efetivamente contribuir com o desenvolvimento da aprendizagem dos estudantes com base no currículo estadual.”

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*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 04 – Educação de Qualidade; ODS 10 – Redução das Desigualdades