É inquestionável os efeitos da pandemia do novo coronavírus na sociedade. Além dos problemas sanitários, sociais e políticos, o mundo financeiro também sofreu um grande baque. O futebol, obviamente, não ficou alheio a isso. Há menos dinheiro circulando, com muitas empresas renegociando ou abrindo mão de contratos. Na Europa, já vemos uma movimentação mais tímida na janela de transferências.

Na última terça-feira (8), durante a assembleia da Associação de Clubes Europeus (Eca), o presidente do órgão, Andrea Agnelli, que também comanda a Juventus, da Itália, alertou para uma questão muito mais profunda. Durante a reunião, que também contou com Aleksander Čeferin, presidente da Uefa, e Victor Montagliani, vice-presidente da Fifa, o modelo de negócios foi colocado em xeque.

De acordo com o dirigente italiano, “as estimativas apontam uma queda na receita de €4 bilhões nos próximos dois anos. Segundo a Fifa, 90% dessa perda será apenas dos clubes, por diversas coisas”. Por exemplo, “todos nós (clubes) jogamos com os estádios vazios, o que não é o que queremos ver. Não apenas por causa da atmosfera do jogo, mas porque uma grande fonte de receita foi completamente perdida”.

Além do mais, “aconteceram grandes acordos de descontos para as principais emissoras, nacionais e internacionais. Vimos descontos de £330 milhões na Premier League, €200 milhões na Bundesliga e estamos no processo de finalizar os valores com a Uefa, que prevê uma redução de €575 milhões nos direitos de transmissão das competições internacionais. É um dinheiro que não será distribuído e atingirá o topo da nossa pirâmide”.

Em virtude disso, “a ausência de receitas de estádio e de direitos de transmissão significa que os patrocinadores também farão uma redução. Não só devido à menor exposição, mas também porque muitas das empresas ainda estão passando por um momento difícil por causa da pandemia. Será difícil ver os valores de antes quando renegociarmos os acordos atuais”. Muitos contratos encerram em 2021, e o cenário para renovação não é positivo.

Por último, Agnelli citou a queda dos valores nas transferências, em que “as estimativas falam de uma redução entre 20 e 30%. Ou seja, menos dinheiro circulará e haverá uma queda enorme no Ebitda (lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização), que pode criar uma crise para a maior parte dos clubes. Devemos ter uma atenção especial sobre como administrar o final da temporada 2019-20 e toda a de 2020-21”.

Risco de colapso

O atual modelo de negócios do futebol europeu é muito dependente dos direitos de transmissão, assim como também vemos no Brasil. Com menor arrecadação de uma fatia muito importante no faturamento dos clubes, as fontes de receita alternativas, que são complementares, como bilheteria, comércio e patrocínios, também caíram ou simplesmente deixaram de existir. Dessa forma, toda a estrutura do futebol está ameaçada.

Agnelli teme que, por exemplo, um grande clube tenha “prejuízos maiores do que os de uma federação inteira. Ainda estamos no meio da gestão dessa crise, que não acabou, e devemos compreender bem o que significará economicamente para os clubes. As cicatrizes dessa crise serão profundas para todos e não é certo pensar que a responsabilidade econômica recairão apenas das principais ligas e clubes”.

Já o jornalista Gianluca Di Marzio, especialista no mercado de transferências, destacou recentemente durante um programa esportivo da Sky Sports italiana que “neste momento, os cofres de todos os clubes ‘choram’, porque não conseguem vender ninguém, já que não há dinheiro. Todos os dirigentes me dizem que não conseguem vender, porque não tem ninguém para comprar agora”.

Por outro lado, Marco Iaria, jornalista especializado em negócios do esporte no jornal La Gazzetta dello Sport, analisou os efeitos da crise na receita do principal clube da Itália, a Juventus. Com um prejuízo estimado em cerca de 71 milhões de euros no último balanço financeiro, que pode chegar até a €90M, registrou uma perda de €40M em direitos de transmissão, além de €33M a menos em arrecadação de bilheteria e merchandising.

Aqui ficou claro o papel que a torcida tem no faturamento dos clubes. Diante da incerteza sobre quando os estádios serão abertos mesmo de forma parcial, o que dirá em condições normais, com lotação, muitas equipes não têm para onde correr. Para discutir isso no futebol italiano, Giuseppe Conte, primeiro-ministro da Itália, se reuniu na última quarta-feira (9) com Gianni Infantino, presidente da Fifa, e Gabriele Gravina, presidente da Federação Italiana de Futebol (FIGC).

Segundo Gravina, “o premiê foi muito claro que a abertura dos estádios é um tema que deve ser tratado com muita atenção, mas estou satisfeito que também tenha ouvido os nossos pedidos”. Já Infantino ressaltou que “o futebol sem os torcedores não é a mesma coisa, mas a saúde é o mais importante. É claro que a reabertura é o objetivo, mas sem estabelecer prazos”.

Já Paolo Dal Pino, presidente da Serie A, a liga que administra a primeira divisão do Campeonato Italiano, que defende a abertura dos estádios, alertou que “o sistema corre o risco de entrar em colapso. Tirar a possibilidade de ter a receita de bilheterias das nossas equipes é preocupante. Se podemos fazer as coisas em total segurança, fazemos o bem para todos. Apresentamos um dossiê em que, estádio por estádio, definiremos os procedimentos técnicos de acesso em conformidade com todas as regras”.

Quem paga a conta?

Todos os números expostos já mostram os primeiros efeitos da crise, mas, parafraseando o companheiro Fulvio Santucci, a recessão inicia agora e será mais sentida a partir do próximo semestre. Para que a estrutura seja preservada, será necessário grandes sacrifícios do topo da pirâmide para salvar quem está embaixo. Por outro lado, a ganância e a busca pelo poder que sempre pautaram o futebol europeu apontam um cenário mais cruel.

Um ano atrás, os dirigentes mais fortes da Eca começaram a colocar a ideia de criar uma Superliga em discussão. O plano dos grandes clubes europeus, que já têm uma elite consolidada há mais ou menos duas décadas, é desprestigiar os campeonatos nacionais e formar uma grande liga internacional, expandindo o sucesso da Liga dos Campeões. Diante do novo caso, se a arrecadação está caindo, ao invés de buscar uma divisão mais solidária, a solução para essa turma é limitar os lugares na mesa.

Na última assembleia, Agnelli desconversou sobre essa situação e ponderou que “estamos parados (na discussão) no momento. Devemos realmente entender quais serão as consequências dessa crise. É importante entender quais as consequências que os clubes de pequeno e médio porte terão. Queremos garantir que eles continuem prosperando nesse sistema e ainda é prematuro ter um entendimento completo da situação”.

O que emperra uma mudança agora, mais do que a própria crise, são os contratos firmados. Inclusive, sobre adotar o formato utilizado de sede única na reta final das competições, o dirigente ressaltou que “as competições entre 2021 e 2024 já foram vendidas como formato atual, ou seja, com partidas em casa e fora até a final. A final do próximo ano da Liga dos Campeões será em Istambul, então está tudo pronto. Qualquer decisão de mudar deve ser adiada para depois de 2024”.

Seja como for, a conta não fecha hoje. E quem vai pagá-la?