Arthur Barcelos
Arthur Barcelos
Apaixonado por futebol e geopolítica, é o especialista de futebol internacional da Sagres e neste espaço tem o objetivo de agregar os dois temas com curiosidades e histórias do mundo da bola.

A bola como refúgio pela vida

Até onde você iria para realizar o sonho de se tornar um jogador de futebol? No Brasil, não é raro ver exemplos de crianças que deixam o interior e a casa dos pais em busca de uma chance em um grande clube da capital. Mas o futebol não é uma paixão exclusiva dos brasileiros, e essa história se repete em outros continentes.

Já pensou em como funciona a dinâmica na África? Na parte subsaariana, o caminho até o primeiro contrato profissional é difícil e perigoso. Os constantes golpes e guerras civis na região levam a graves problemas sociais em praticamente todas as nações, e se tornar um jogador de futebol não é uma realidade alcançável para muitos jovens no continente.

Por isso, a saída muitas vezes é buscar a antiga metrópole. A partir dos processos de independência dos estados africanos e os primeiros conflitos com a formação das repúblicas, o êxodo para o continente europeu se intensificou nos anos 1980, principalmente em países colonizadores como Inglaterra, Bélgica, França e Alemanha.

Esse processo é fácil de ser observado através do futebol. Nas últimas três décadas, os rostos dos jogadores das seleções europeias ganharam novos traços e cores. São os filhos dos primeiros imigrantes, que encontraram abrigo longe da terra de seus ancestrais. É o recorte de um mundo cada vez mais globalizado e multicultural.

Yayah Kallon, atacante do Genoa (Foto: Genoa CFC)
Em busca de refúgio

Mas a história que estamos para contar aqui é outra, muito mais recente e dramática. Diferente das outras potências europeias, a Itália não teve um grande império colonizador e nem tampouco acolheu tantos migrantes de suas colônias. No entanto, a proximidade com o continente africano levou à outra situação: o abrigo a refugiados.

Se tratam de pessoas que escaparam de sua terra natal não apenas em busca de uma condição de vida melhor, mas para garantir a sua própria sobrevivência. Pessoas submetidas a uma situação desumana em casa, que fugiram da tortura e da guerra, e que passaram por uma grande aventura até o desembarque na costa italiana.

Afinal, a rota do Mediterrâneo Central é o caminho mais perigoso para entrar no continente europeu, também considerada a rota migratória mais mortal do mundo. São diversos os fatores que dão origem a esse estigma, que vão muito além das condições precárias das embarcações utilizadas na travessia e dos ventos e tempestades no mar.

A travessia ilegal é fonte de renda para os traficantes de pessoas, que transportam milhares de africanos a cada ano. A ilha da Sicília e a região sul do território italiano, a cerca de 500 km da costa da Líbia, são os principais destinos. Porém, nem todos conseguem chegar ao outro lado, vítimas de acidentes e grandes tragédias fatais.

Com a crise dos refugiados e o pico de mais de 181 mil resgatados do mar em 2016, figuras como Matteo Salvini ganharam espaço na política italiana com um discurso anti-imigração. Líder do partido de extrema direita Lega Nord, Salvini foi ministro do interior entre 2018 e 2019, período em que foram registrados os menores números de refugiados.

Isso por conta de decretos que limitaram a atuação das ONGs especializadas no acolhimento de imigrantes na costa do país, além da extinção de centros de recepção aos refugiados. A política só foi revogada em 2020, após a saída de Salvini do governo, e as portas da Itália voltaram a ser abertas para o abrigo.

Ebrima Darboe, volante da Roma (Foto: AS Roma)
Abrigo na bola

Diante desse cenário, o futebol italiano tem sido um espaço importante para contar as histórias de jovens africanos que partiram para a “Terra da Bota” com uma bola nas mãos. O exemplo mais recente é o do guineense Moustapha Cissé, de 18 anos, que chamou a atenção em março, na sua estreia profissional.

Foi de Cissé o gol da vitória Atalanta sobre o Bologna no estádio Renato Dall’Ara, pela 30ª rodada da Serie A, apenas um mês depois de ter sido contratado pelo clube de Bérgamo. O jovem foi descoberto em um amistoso do Lecce, equipe da segunda divisão italiana, contra o seu então time, o Rinascita Refugees, clube amador da oitava divisão.

O gol de Cissé ajudou a colocar em evidência o projeto Rinascita, uma ONG sediada na província de Lecce, na Apúlia, que oferece abrigo e oportunidade de trabalho a refugiados no sul da Itália. Órfão, Moustapha deixou Guiné e atravessou o Mediterrâneo sozinho aos 16 anos. Hoje tem um contrato profissional com um clube da primeira divisão.

Outro jovem refugiado que brilhou nas categorias de base do futebol italiano e ganhou a primeira chance no profissional na última temporada da Serie A foi o serra-leonês Yayah Kallon, de 20 anos. Atacante promissor do Genoa, Kallon fugiu de seu país com apenas 14 anos para evitar ser alistado como soldado na guerra civil da Serra Leoa.

Foram ao todo oito meses para enfim deixar o continente africano e chegar na Itália. O seu desembarque aconteceu na ilha de Lampedusa, o pedaço de terra italiano mais próximo da Líbia, de onde Kallon embarcou. Depois de se instalar no Piemonte, no norte do país, a primeira chance real no futebol se deu três anos depois, na Ligúria.

Observado em uma peneira, chamou a atenção do Genoa, que o vinculou a outro clube da região, o Savona. Após uma temporada na quarta divisão, Kallon enfim assinou o seu primeiro contrato profissional. Depois de brilhar no campeonato sub-19, foi promovido para o time principal do Genoa e participou de 17 jogos na última temporada.

Musa Juwara, atacante do Bologna (Foto: Bologna FC)

Na temporada 2020/21, quem chamou a atenção foi o gambiano Ebrima Darboe, de 21 anos. Volante técnico, está na Roma desde 2017 e assinou seu primeiro contrato profissional em 2019. Desde o ano passado, compõe o elenco principal do clube da capital. Apesar do espaço reduzido na última temporada, já é um ídolo na Gâmbia.

Mas Darboe precisou fugir para ter sucesso. Deixou a mãe e os irmãos para entrar na maior aventura de sua vida aos 14 anos: atravessar o Deserto do Saara. O objetivo: fugir da fome e ajudar a família jogando futebol. Sem chances na Líbia, conseguiu enfim chegar na Itália, onde acabou adotado por uma família no Lácio e teve que persistir até conseguir uma chance na Roma.

Quem também saiu da Gâmbia para a Itália atrás do sonho pelo futebol foi Musa Juwara, que ficou em evidência dois anos atrás, quando marcou um dos gols da vitória do Bologna contra a Inter em pleno San Siro. Órfão dos pais, atravessou o Mediterrâneo em um pequeno bote sozinho com apenas 14 anos.

Após desembarcar na Sicília, foi acolhido na da região da Basilicata por uma família, cujo patriarca o ajudou a entrar no futebol. Treinador da Virtus Avigliano, Vitantonio Summa deu abrigo e a primeira chance de Juwara, que logo se destacou e foi contratado pelo Chievo em 2017. Dois anos depois, foi comprado pelo Bologna por 500 mil euros.

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