Norberto Salomão
Norberto Salomão
Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Professor de História, Analista de Geopolítica e Política Internacional, Mestre em Ciências da Religião e Especialista em Mídia e Educação.

A finitude dos imortais

O filósofo político e professor de filosofia da Universidade Clemson, na Carolina do Sul, Todd May é autor de obras bastante instigantes, entre elas destaco as seguintes: A Significant Life: Human Meaning in a Silent Universe; A Fragile Life: Accepting Our Vulnerability e Death. Nessas três obras o autor busca nos conduzir em uma introspecção acerca da importância e dos significados da vida e da morte.

Em A Significant Life: Human Meaning in a Silent Universe, de 2015, May nos conduz a uma reflexão sobre o que é preciso para viver uma vida significativa e digna de ser vivida. 

Já na obra A Fragile Life: Accepting Our Vulnerability, de 2017, Todd May estabelece um tom mais provocativo e nos leva a indagar se o ideal não seria uma vida sem sofrimentos ou pelo menos na qual fossemos impassíveis diante deles. A resposta óbvia, porém, extremamente superficial, seria que sim. Mas, o autor nos desafia a refletirmos como as nossas mazelas físicas e emocionais dão sentido à vida, pois algum nível de sofrimento é inevitável e ao percebermos essa nossa vulnerabilidade tomamos consciência de nossa humanidade, de nossos vínculos com mundo e sua real dimensão. Assim, de forma paradoxal, a consciência de nossas fragilidades nos fortalece.

Mas, é na obra Death, de 2008, que May trata mais diretamente sobre as questões que envolvem os sentimentos e perspectivas sobre a vida e a morte. Segundo ele, há diferentes maneiras de se encarar a morte, mas é bem verdade que na maioria delas o ser humano busca alternativas para escapar do fim inevitável. Ao desenvolver sua argumentação, estabelece como eixo fundamental o fato de que a incontestável inevitabilidade da morte é o que torna a vida preciosa e lhe dá sentido.

Imagem: Foto: CC0 Public Domain

Mas, como a morte é algo inexorável, é possível falarmos em imortalidade? Bem para avançarmos em nossa reflexão, entendo que antes se faz necessário diferenciarmos imortalidade de eternidade. Enquanto a imortalidade diz respeito ao que não morre, que transcende a morte, a eternidade refere-se ao que sempre existiu e existirá. Assim, a ideia de eternidade não pode se aplicar ao ser humano, mas, o conceito de imortalidade sim, enquanto elemento ligado a manutenção da memória, das narrativas e da relevância das ações no tempo.

Recorrerei ao escritor argentino Jorge Luís Borges, que em seu conto O imortal, que está na coletânea O Aleph, publicado em 1949, afirma que “Ser imortal é coisa sem importância. Excepto o homem, todas as criaturas o são, porque ignoram a morte. O divino, o terrível, o incompreensível, é considerar-se imortal”. 

Nessa perspectiva o ser humano molda sua imortalidade à medida em que produz cultura, que é transmitida, aprendida e preservada por gerações. Quando faz guerras e a partir de seus resultados e posteriores acordos se constroem valores que podem balizar as futuras gerações e suas instituições. Todos esses aspectos envolvem o conceito de imortalidade.

É nessa perspectiva que acredito que só morre aquele que não deixou nenhuma contribuição, nenhum legado, nenhuma memória. Ao fazer essa afirmação não me refiro apenas à personagens notáveis ou de grande repercussão histórica, mas também faço referência a todos aqueles que um dia estiveram em nosso convívio e se foram, mas que permanecem sempre presentes em nossas lembranças.

Essa percepção da construção de personagens imortais ficou mais presente nas últimas semanas, diante das mortes de Mikahil Gorbachev e da rainha do Reino Unido Elizabeth II, dois ícones do século XX.

Mikhail Gorbachev, falecido em 30/08, é considerado um dos maiores símbolos das transições do final do século XX, com a Queda do Muro de Berlim, a reunificação da Alemanha, o fim da Guerra Fria e a dissolução da URSS. Mas, mesmo após sua morte continua sendo alvo de controvérsia sobre o seu legado, e os impactos das suas políticas para o mundo atual.

A rainha Elizabeth II, falecida em 08/09, com seu longo reinado de 70 anos, além de ter presenciado e, em alguns casos, ter participado dos principais acontecimentos internacionais, está imortalizada como um ícone do Reino Unido e do século XX.

Dessa forma, a mesma consciência e racionalidade que nos revela com dureza a certeza da finitude, também nos permite construir possibilidades e legados de nossa imortalidade. Essa dualidade se dá de forma simbólica e paradoxal, talvez até mesmo dialética.

Fato é que até os imortais são colhidos pela finitude, pelo limite da existência corpórea. O funeral de Gorbachev, que morreu aos 91 anos, foi realizado em Moscou sem a presença do presidente Vladimir Putin. O Kremlin recusou-se a dar ao funeral honras de chefe de Estado. Mas, no Ocidente Gorbachev é idolatrado.

Já o velório da rainha Elizabeth II seguirá um longo protocolo. Neste domingo, 11/09, o caixão com o corpo da Rainha foi transportado do Castelo de Balmoral, onde ela morreu, para o Palácio de Holyroodhouse, em Edimburgo, capital da Escócia. Nos dias que seguintes o caixão passará por várias localidades até o sepultamento no dia 19/09.

Assim, ficam o legado, as memórias e as realizações. Mas, de qualquer maneira prevalece o dito, de origem controversa, segundo o qual “no final do jogo, a rainha e o peão voltam para a mesma caixa”.

Norberto Salomão é advogado, historiador, mestre em Ciências da Religião, professor de História, especialista em Mídia e Educação e especialista em Geopolítica

Mais lidas:

Leia também: