Ca Tinha oito alqueires de terra, com a casa no perímetro urbano e o restante entrando para os lados de Trindade. Era chamado de João Fala Grossa pelo voz grave… Tão grave que conforme a altura que falava não dava para decifrar.

Ficou viúvo em 1939, seis anos após o lançamento da Pedra Fundamental de Goiânia, em 24 de outubro de 1933. Era anti-Getulista e contra a vinda da nova Capital de Goiás para o município de Campinas: “Que levem isto lá pro Bonfim, Pires do Rio de Ubatan ou pro raio que o parta.

É gastar dinheiro à toa, construindo uma cidade para ser Capital, Goiás já tem uma e das mais belas. Mas o dinheiro não é deste médico bajulador do Getúlio, então que deixem nossa cidade aqui e leve esta porcaria de Capital para outro lugar” – dizia quando alguém tocava no assunto.

Era católico fervoroso, mas quando soube que Dom Emanuel Gomes de Oliveira, presidente da Comissão formada por Pedro Ludovico Teixeira, para escolher o local apropriado para a construção da nova Capital, havia escolhido as áreas das Fazendas Criméia, Vaca Brava e Botafogo para abrigar a cidade a ser construída, rompeu com a igreja. Dona Rosalina continuou católica. Sofreu demais com a morte da mulher. Só tinha uma coisa que gostava mais do que dela: dinheiro.

O humor que já não era bom desde que Getúlio Vargas foi empossado na presidência, que piorou quando Dom Emanuel escolheu o município de Campinas para abrigar a nova Capital, ficou ainda pior quando soube que a pedra fundamental seria lançada no dia 24 de outubro de 1933, em comemoração aos três anos da Revolução Armada de 1930.

Dona Rosalina viu quando ele buscou o Baguá no pasto, selou com arreio de cabeça, jogou o pelega amarelo que ela mesma havia tecido, por cima do arreio. Saiu de lá, pegou a bola de sabão decoada e foi tomar banho na bica. Rosalina já sabia que ele iria a algum lugar importante. Junto com a bola de sabão pegou a navalha.

Colocou o fio na lâmina, frisou a barba e o bigode (não usava espelho para arrumar os pelos da cara) e veio vestir a calça de algodão que a esposa tinha feito há uma semana. Foi até a casinha do tear contou que iria falar com o Licardino. Era preciso organizar uma resistência para não aceitar a vinda da Capital, que mataria a glamorosa cidade de Campinas, também conhecida como Campininha das Flores.

A mulher tecendo estava, tecendo ficou. João Fala Grossa montou o Baguá e partiu em marcha picada rua a dentro, rumo ao centro de Campinas, onde hoje está a Praça Coronel Joaquim Lúcio.

O Baguá era um cavalo lindo. Alazão grande, com estrela na testa, marchava picado, mas a medida que a viagem desenvolvia ele soltava os gases, que o Fala Grossa não se incomodava. Mas de longe, quando ouviam o som do repicar dos cascos e o estampido dos flatos, os conhecidos já sabiam quem vinha lá.

Entre a fazenda onde vivia com Rosalina e o centro da cidade era uma hora de caminho. A área já tinha sido decretada urbana, pela Câmara Municipal, entre o Córrego Capim Puba e o trevo de Saída para Trindade. Suas terras ficavam na Esplanada do Anicuns, chegando ao final da nova área urbana.

Mas o infeliz do Getúlio, através do interventor Pedro Ludovico interferiu nos municípios e praticamente tudo o que foi iniciado antes de 1930 foi tocado pra frente. Assim poucas ruas foram abertas e poucos barracões eram visto na trajetória.

Licardino de Oliveira Ney era homem de palavra forte, mas de temperamento terno. Recebeu Fala Grossa com toda cortesia. Ouviu as reclamações, xingamentos ao Getúlio e Pedro Ludovico, o desejo de ver aquilo passar para os Caiados voltar ao poder em Goiás e a proposta de estabelecer um núcleo de resistência para evitar que a ideia do Bispo vingasse:

– “Já temos uma cidade aqui e o nome dela é Campinas. Soube que a nova Capital vai ter nome escolhido por concurso. É um desrespeito triplo, primeiro por trazer a Capital para tirar nosso sossego, depois por desrespeitar o nome que nossa cidade tem e por fim por gastar o dinheiro do povo para fazer uma cidade nova com o Estado tendo tantas”, explanou.

Habilidosamente o prefeito serviu um café forte ao visitante e disse: – “Loucura instituir a resistência. As tropas do Estado nos esmagariam no primeiro embate. Além do mais o Doutor Pedro é homem inteligente, sabe o que está fazendo. A vinda da Capital vai valorizar as terras do município, trazer o desenvolvimento para a região e no seu caso vai te dar muito lucro”, explicou o prefeito.

Fala Grossa tinha uma serraria montada nas suas terras, tocada por uma imensa roda d’água, armada no Ribeirão Anicuns. Licardino mostrou que as construções para estruturar a nova Capital seriam coisas modernas: Palácio, Fórum, Prédios para secretarias e para a nova prefeitura, um Centro Administrativo com mais de 10 andares, a Catedral Metropolitana, abertura e encascalhamento das ruas e avenidas, construção de praças.
Enquanto Licardino falava, o ermitão ia matutando.

Poderia vender a areia do rio e toda madeira que conseguisse beneficiar: – “Faz o seguinte, te convido para ir ao lançamento da Pedra Fundamental, com a comitiva da prefeitura. Não vou com vocês pois terei de receber o interventor antes, mas um caminhão, vai sair daqui da porta da prefeitura e levar os meus convidados. O senhor vem no seu cavalo peidorreiro até aqui e daqui pra frente vai de caminhão. Vamos ver o que o interventor tem a falar e depois a gente vê o que pode ser usado a favor de Campinas neste processo todo”, concluiu o prefeito.

João não gostou do adjetivo usado para identificar o Baguá, mas o convite era alvissareiro. Confirmou a participação na comitiva, se despediu e ainda pegou o jantar sendo tirado do fogão caipira, por Rosalina. A casa era imponente pra época. Bangalô, azul por fora e por dentro, quatro quartos, sala, copa, cozinha e área. Para o lado da bica tinha uma casinha onde ficavam o forno de barro de um lado e o tear do outro.

Para o lado do curral tinha outra casinha onde ficavam o carroção puxado pelos burros e o carro de bois. O dele era dos maiores que existiam naquelas paragens. Tinha oito juntas de bois de causar inveja na vizinhança. Não teve filho. Rosalina não pegava barriga.

No caminho de volta fez contas e viu que precisava mudar de ideia. O que o Licardino falou era a mais pura Verdade. Antes de 24 de outubro chegar, se encontrou com Milton Kopstok, comerciante do distrito de Ribeirão (hoje Guapó) que comprava caibros, ripas e vigota para revender.

Falou sobre o assunto e o comerciante afirmou que estava inclusive se preparando pois quando a Capital estivesse concluída, ele seria candidato a vereador: – “Eu aqui por Ribeirão e dois lá de Campinas, o Licardino que não vai querer ficar de fora e não será indicado pelo interventor para prefeito e o Zé Rodrigues de Moraes Filho. Vamos ganhar os três e trabalharmos juntos pela valorização de Campinas” – falou o comerciante de nome esquisito.

Quando chegou na porta da prefeitura o caminhão estava lá. Tinha tábuas enfiadas nos vãos dos ripões das laterais da carroceria, ligando um lado ao outro, bem amarradas, uma atrás do outra, servindo de bancos. Todos se sentaram ali e foram para o local do lançamento da Pedra Fundamental – onde hoje está o Palácio das Esmeraldas.

No discurso Pedro Ludovico enalteceu a Revolução de 1930, explicando que a previsão da construção da nova Capital estava estipulada desde a Proclamação da República em 1889, mas a Constituição de 1891 derrubou o projeto:

– “Mas a honradez deste desbravador que vai construir um novo Brasil, Getúlio Vargas, destituiu aquela Constituição vergonhosa, resgatou este compromisso com o povo Goiano. Muitos falam que é gasto, eu falo que é investimento e o dinheiro para sustentar as obras já está autorizado pelo presidente Vargas. Se preparem campineiros pois precisaremos de tijolos, cal, areia, telhas, madeiras, carroções, carro de bois e mão de obra. As ferragens, fios, mármores e outras coisas que a cidade não produz virão de São Paulo” – falou Pedro Ludovico, que continuou o discurso, mas para João Fala Grossa já estava de bom tamanho.

Uma senhora passou anotando nomes dos presentes, ele respondeu baixinho e ela não entendeu. Repetiu: “João Batista Ferreira, mas pode me escrever João Fala Grossa” – desta vez ele entendeu e contou que se chamava Maria de Paiva. Tinha uns 42 anos, duas alianças no dedo médio esquerdo, o que demonstrava que era viúva. Fala Grossa viu ela olhando de esgueiro quando se afastou para anotar outros nomes.

Saiu de lá concordando que a construção da Capital veio para o lugar certo, voltou ser católico, virou ludoviquista e getulista. Quando as obras começaram vendeu areia retirada do Anicuns por seus peões e com o carroção puxado pelos seis burros entregava nos lugares determinado pelo Dr. Atilho Correia Lima.

Pegava empreitada para produzir madeiras para escoramento de obras, para servir de caibros, vigotas e ripas de telhados e ganhou muito dinheiro. Foi neste período que dona Rosalina morreu. Era sábado à tarde, ela fez biscoitos no forno de barro, encheu os balaios, fez o jantar, se banhou e enquanto ele foi banhar na bica, ele se deitou um pouco para descansar da lida do dia. Quando foi chamá-la para jantar juntos, como faziam todos os dias, ela estava morta.

Sepultou a mulher com a presença de muita gente. Até o prefeito Licardino, foi no enterro no Cemitério do Bairro Bonfim. Foram dias de solidão e tristeza. Três anos antes haviam acontecido as primeiras eleições para vereador e Licardino de Oliveira Ney, José Rodrigues de Moraes Filho e Milton Klopstock estavam entre os eleitos. Os três também estiveram presentes.

A viuvez durou até 1941, quando foi ao escritório gestor das obras, para receber as entregas do mês e lá reencontrou Maria de Paiva, com as duas alianças no dedo médio da mão esquerda. A mais fina colocada por último para segurar a mais grossa. Ele ainda usava a aliança com o nome da Rosalina, na mão esquerda, mas a aliança dela não coube no dedo – que a exemplo da fala, também era grosso. Ela fazia o pagamento.

Quando olhou para a mão dele e viu a aliança mudou o jeito do olhar. Percebendo e interessado, falou que também estava viúvo. Contou detalhes da morte de Rosalina e seis meses depois, com 63 anos, na Igreja Matriz de Campinas, tendo como testemunhas Jose Rodrigues Moraes Filho e esposa, Milton Klopstock e esposa, Licardino de Oliveira Ney e esposa e Pedro Ludovico Teixeira e dona Lurdes Como testemunhas, João Batista Ferreira e Maria de Paiva se casaram.