O agravamento da crise climática está alterando o mapa dos deslocamentos populacionais em todo o mundo. O fenômeno, discutido na última edição do programa Agir Sustentável, da Sagres TV, revela uma nova face da emergência ambiental: os migrantes do clima, pessoas forçadas a deixar seus lares por causa de desastres naturais cada vez mais frequentes e intensos.
Embora ainda não exista reconhecimento legal pela Convenção de Genebra para o termo “refugiado climático”, a realidade imposta pelas mudanças do clima já é inegável. No programa, o professor e doutor em Geografia, Romualdo Pessoa, explica que o termo mais adequado seria deslocado climático ou migrante climático, já que a maioria dessas pessoas se desloca internamente, dentro do próprio país, em busca de sobrevivência.
“Esses deslocamentos estão ligados tanto a eventos abruptos, como enchentes e deslizamentos, quanto a transformações graduais, como a escassez de água. Ambos os casos tornam a permanência das famílias em suas terras inviável”, destacou o professor durante entrevista realizada no Bosque Botafogo, em Goiânia.
O programa relembrou casos marcantes como os incêndios de 2018 em Paradise, na Califórnia, que forçaram milhares de pessoas a migrarem para a cidade vizinha de Chico. O aumento repentino da demanda por moradia elevou os preços dos aluguéis e expulsou os mais pobres.
Situação semelhante ocorreu no Brasil, como no caso das chuvas torrenciais e deslizamentos em Petrópolis (RJ) ou, mais recentemente, com as inundações catastróficas no Rio Grande do Sul, que deixaram milhares de desabrigados. “Esses eventos mostram que, muitas vezes, as áreas de risco são ocupadas por populações vulneráveis, sem alternativa habitacional adequada”, afirmou Romualdo.
Justiça climática
O debate também se debruça sobre o conceito de justiça climática, um dos eixos centrais da COP30, que será realizada em Belém do Pará. O professor destacou que os impactos das mudanças climáticas são desiguais: enquanto os mais ricos têm recursos para se proteger ou reconstruir suas vidas, os mais pobres ficam expostos à perda total e ao abandono.
“Vemos isso de forma clara em vários pontos do mundo. O Lago Chade, na África, já perdeu mais de 80% de sua área nas últimas décadas, afetando a subsistência de comunidades em quatro países. O Mar de Aral, na Ásia Central, quase desapareceu por conta de desvios de rios para a monocultura de algodão. Casos semelhantes se repetem no Rio Colorado, nos Estados Unidos, e em tantas outras regiões”, explicou o geógrafo.
De acordo com relatório da ACNUR, agência da ONU para Refugiados, a interconexão entre crise climática e deslocamento forçado é cada vez mais evidente. O aumento das temperaturas, a frequência de eventos extremos e a degradação ambiental comprometem os meios de subsistência, intensificam a pobreza e geram conflitos entre comunidades.
Apesar da urgência, muitos dos afetados por essas crises ainda esperam por ajuda. “Até hoje, no Rio Grande do Sul, famílias atingidas pelas enchentes ainda não foram reassentadas, embora casas tenham sido prometidas. A resposta é lenta, e os mais pobres são os mais atingidos”, conclui Romualdo Pessoa.
Alagamentos em Goiânia
Outro exemplo está em Goiânia, onde bairros convivem com alagamentos constantes e populações vulneráveis enfrentam o risco de serem forçadas a deixar suas casas. A Vila Roriz, situada na confluência dos rios Meia Ponte, Anicuns e o Ribeirão João Leite, é um dos principais retratos dessa realidade.
Há mais de 50 anos ocupada por famílias, a região sofre anualmente com cheias que colocam vidas e moradias em risco. “A gente convive com esse risco direto. Quando a chuva vem, a água sobe, entra nas casas, e não temos pra onde ir”, relatou uma moradora que vive no local há 26 anos.
Em um dos piores episódios, o nível da água chegou a 70 centímetros dentro de sua residência. Apesar da construção de um dique em 2021, o problema persiste, agora agravado pelo acúmulo da água de escoamento urbano, que não consegue transpassar a barreira. A Defesa Civil mantém monitoramento constante da área e reconhece que a solução ideal seria a remoção das famílias que vivem em zonas de risco.
No entanto, a falta de alternativas habitacionais viáveis impede que essa proposta seja efetivamente implementada. “Essas famílias não têm condição de sair. A realidade é dura, e o poder público precisa se antecipar, mas não o faz com a urgência necessária”, aponta Pessoa. O cenário de vulnerabilidade se repete em outros pontos da capital goiana, como na Vila Bandeirantes, onde o risco é geológico, com possibilidade de deslizamentos.
A nova face
Além dos impactos diretos nas áreas de risco, Goiânia já começa a receber migrantes climáticos – tanto brasileiros quanto estrangeiros – deslocados por catástrofes ambientais. Em 2024, por exemplo, 19 famílias haitianas chegaram à região metropolitana após fugirem da crise no país caribenho, agravada por terremotos, instabilidade política e pobreza extrema.
Essas famílias foram acolhidas por uma parceria entre a Prefeitura de Aparecida de Goiânia e a Igreja Ortodoxa, que destina 50 vagas em um centro de educação infantil para crianças refugiadas, sendo atualmente 19 haitianos e uma venezuelana. “Hoje temos migrantes por diversos motivos, e o clima é um deles. É preciso criar políticas públicas que promovam inclusão e ofereçam oportunidades reais para essas pessoas”, afirmou Michel Magul, especialista em relações internacionais.
Segundo a ACNUR, 60% dos novos deslocamentos globais desde 2022 foram causados por desastres naturais, como enchentes, que também devastaram o sul do Brasil em maio de 2024, forçando mais de 700 mil brasileiros a deixarem suas casas. Esses dados escancaram a urgência de enfrentar as mudanças climáticas com ações concretas de mitigação e adaptação.
O programa Agir Sustentável, da Sagres TV, encerrou sua edição destacando que os efeitos das mudanças climáticas já são uma realidade vivida no cotidiano de milhões de pessoas. Enquanto faltam respostas rápidas do poder público, comunidades vulneráveis seguem enfrentando os riscos de frente, muitas vezes sozinhas.
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 13 – Ação Contra a Mudança Global do Clima.
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