As motos Jawas ainda circulavam pelas ruas de Campinas antes da chegada das japonesas, que faziam menos barulho, eram mais confortáveis e pareceriam (naquela época) mais bonitas. As Jawas eram chamadas de motores, só tinham nas cores vermelha fosca e preta. Já as japonesas chegaram em todas as cores.

Nesta época em que o Brasil estava debaixo de chicote de ponta de chumbo, as Jawas dividiam o espaço com as Lambretas e Vespas que tinham rodas pequenas e carenagem de proteção que não deixava sujar os ocupantes. Quando as japonesas chegaram, as Jawas, Vespas e Lambretas foram para o esquecimento. Hoje são peças admiradíssimas e de grande valor nos antiquários. As ruas campineiras ainda eram ocupadas por Gordinni, DKV, Candango, Chrevrolet Marta Rocha, Aerowillis, Rural, caminhões Fenemês, Fords e Chevrolet, Kombi e o xodó dos mais exibidos, o Fusca.

Tinham ainda os Jeeps. Como tinham Jeeps nas ruas de Campinas e eram bonitos e ostentadores: carros de fazendeiros cheios da nota. Vez ou outra se via um Impala e já se sabia que o dono, quase sempre de terno e gravata, não era morador do Bairro.

O Zé Lisboa comprou um quando a madeireira da Pouso Alto com a 504 o deixou rico. Mas aquele nunca era visto circulando: o português continuou andando de bicicleta e o carrão ficava coberto com uma lona, na garagem. As bicicletas sim eram vistas: Gorik, BSA, Caloi e Monark. Freio de mão, freio de pé, pneus balão ou fino e do tamanho ideal para a idade do dono. As dos homens tinham canos altos (onde eles colocavam os meninos nas idas e vindas) e garupeiras para dar carona para as mocinhas. As das mulheres tinham os canos retorcidos para baixo, de forma que elas subiam sem ter de levantar as pernas e pedalavam sem mostrar os fundos.

Campinas era linda. O ponto máximo era a Praça Joaquim Lúcio, no começo da avenida mais movimentada da cidade, a 24 de Outubro. Os canteiros da Praça eram cobertos por grama no solo e rosas de todas as cores suspensas. Muitos pés, todos carregados em todos os dias do ano. Era chique, tinha um cano com buraquinhos, estendido de uma extremidade a outra, que fazia conexão com vários outros também com buraquinhos. Parrudinho, cuidador da Praça só abria a torneira e a água cotejava por todos os canteiros. Bancos de cimento polido, com nomes dos ricos do Bairro que doaram os mesmos para a instalação na Praça – ideia de um jovem vereador do bairro, que cumpria o primeiro mandato, de nome comum de dois gênero, Íris.

A fonte luminosa era a coqueluche. Ligada às sete da noite: subia e descia água verde, vermelha, azul e amarela. O coreto ainda estava lá. No dia do Festival de Folia era na parte de cima do coreto que as autoridades se acumulavam para julgar o melhor terno. Nas missas campais os padres redentoristas rezavam lá de cima também e nos dois eventos o povo lotava a Praça lá em baixo. O alto falante jogava as vozes que estavam lá em cima, para os quatros cantos da Praça. Na parte debaixo do coreto, o Parrudinho deixava a enxada, enxadão e um regador, que ninguém nunca o viu usar, além de uma pinhola de argola, para surrar algum moleque que tentasse roubar flor ou pisar na grama. Era na parte debaixo que o Parrudinho deixava sua BSA preta. Este coreto foi derrubado e depois construíram o que está lá hoje. A fonte desapareceu no tempo e os canteiros viraram calçadão de cimento. Nunca soube que fim levaram os bancos com os nomes dos bacanas endinheirados.

Sei lá porque que a Praça homenageava com o nome, o Joaquim Lúcio, só sei que ele era coronel e amigo do Licardino, último prefeito da cidade antes de Goiânia vir roubar suas terras e transformá-la em bairro.

Nos finais de semana tinha o vai-e-vem. As moças sentadas nos bancos com os nomes dos ricos e os rapazes indo e vindo. De vez em quando um piscado e vários deles, depois do saco de pipoca, da maçã do amor e da bala de menta, acabaram em casamento.

Ninguém, nem o mal humorado do Parrudinho viu em que momento o Tristão chegou. Quando viu ele já estava lá. Era magrelo, alto, nariz fino e pontiagudo, olhos pretos, tristonhos enfiados na cara magra. Branquelo, braços longos, mãos grandes, boca pequena, cabelo liso e grande, com os fios brancos acabando com os loiros que ainda restavam. Português corretíssimo, estava com roupas sempre limpinhas (que passou a lavar na torneira do tanque de lavar as mãos). Sempre limpinho. Logo fez amizade com o Dr. Darcy, delegado da cadeia que ficava na rua José Hermano, uma das que contornam a Praça e tomava banho lá todos os dias. Era tão encantador que até o Parrudinho ficou seu amigo e perdia horas conversando com ele. Sempre colocava nas conversas frases de muito valor.

Logo se tornou atração para os jovens nos finais de semana. Vários deles cercavam o Tristão para conversar. Depois as frases ouvidas viravam texto para as primeiras folhas dos cadernos, ou nos bilhetinhos trocados pelos namorados: “A paixão é pedreira eficiente, se não edifica o amor, constrói o ódio”; “As quedas nos fazem cautelosos e os erros são professores rígidos, mas eficientes”; “Se onde você está, está ruim, fecha os olhos e seja passarinho, abra as asas e voa”; “Quem vive para o futuro nunca vive, pois por mais que o tempo passa, ele estará sempre lá na frente”.

Ninguém nunca o viu pedir nada para ninguém, mas tinha sempre o dinheiro para comer no Bom Bocado e comprar conmel que bebia um atrás do outro para curar a dor de cabeça. Não bebia, mas fumava Minister, cigarros dos mais carros. Depois que a Praça esvaziava e o Parrudinho ia embora ele se deitava na parte de baixo do Coreto e dormia. Tinha uma coberta de algodão para forrar o chão é uma outra para se cobrir. Calças enroladas serviam de travesseiro. Antes do primeiro ônibus da São José parar na praça já estava acordado, com um radinho de pilha de capa de couro marrom, ligado, escutando o Alma Sertaneja, do Claudino Silveira.

No dia que acabou a energia ele falou: “A luz e as trevas estão sempre batendo na porta da vida, nós escolhemos para qual permitir a entrada”. Numa conversa com o Parrudinho, que contou que o gerente da farmácia tinha feito a moça do caixa chorar, o Tristão lascou está: “Fraco que se acha forte não pode ter posto de comando, pois se torna rancoroso, prepotente e acaba odiado”.

Num domingo depois que a Praça esvaziou, lá pelas dez da noite e o Parrudinho foi se despedir para ir embora. Mandou o Parrudinho ir com cuidado e para que não se esquecesse que “a vida era uma estrada sem começo e sem fim, ligada a outras estradas que levam a todos os lugares. Ninguém sabe quem vai lá na frente e nem quem vem lá atrás – é cada um com sua viagem, sua bagagem e seu destino”. Sem entender bulhufas, o Parrudinho só disse: “Boa noite Tristão” – subiu na BSA preta e pedalou rumo à Vila Abajá, onde morava.

Na segunda feira quando chegou, o Parrudinho viu que o Tristão não estava mais lá. Chegou sem ser notado e saiu sem ser visto. Pegou a estrada da vida, seguindo a viagem com sua bagagem e seu destino. Nunca mais ninguém ouviu falar do Tristão e até hoje, na quadra dos 95 anos, o Parrudinho se pergunta: “Afinal quem era o Tristão”. Nunca encontrou a resposta.