THIAGO BETHÔNICO / SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O marco do saneamento básico voltou ao debate após integrantes da equipe de transição do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), defenderem mudanças na legislação, que estimulou a participação da iniciativa privada no setor de água e esgoto.
Embora o tema não tenha sido tratado no balanço final da transição, há expectativa de que o novo governo recomende revisões, principalmente no que diz respeito a concessões e privatizações.
Nesta semana, entidades do setor divulgaram uma carta dizendo que o marco do saneamento pode sofrer um baque durante o novo mandato de Lula. O argumento é que limitar a abertura do mercado seria um retrocesso regulatório, que diminuiria a competição e comprometeria a universalização do acesso a água e esgoto.
O QUE É O MARCO DO SANEAMENTO?
O Marco Legal do Saneamento Básico (14.026/2020), sancionado em julho de 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), estabeleceu metas para a universalização dos serviços de água e esgoto, e buscou atrair investimento privado para o setor.
Na prática, a medida alterou a forma como os contratos de concessão são feitos, tornando obrigatória a abertura de licitação prévia –o que abriu maior espaço para a participação de empresas privadas na disputa.
A legislação também definiu a ANA (Agência Nacional das Águas) como agente regulador para o setor, criou um Comitê Interministerial de Saneamento Básico, e fixou metas para acabar com os lixões a céu aberto no Brasil -cujo cronograma está atrasado.
A aprovação do marco ocorreu em junho de 2020, no Senado, após polêmicas e discussões. Na época, toda a bancada do PT, com seis senadores, votou contra.
Um dos pontos criticados era a velocidade que os defensores da medida estavam dando ao trâmite. Para os opositores, o debate de um novo marco do saneamento precisaria ser feito com cautela e num momento menos conturbado da pandemia, que havia sido decretada três meses antes.
Mas o principal ponto em debate era o incentivo à privatização do serviço. Parlamentares contrários à proposta questionavam a possibilidade de aumento nas tarifas e o risco de desassistência em regiões com pouca atratividade comercial.
QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS MEDIDAS DO MARCO DO SANEAMENTO?
A nova legislação definiu a meta de ampliar o acesso à água potável para 99% da população até 2033. Até lá, o tratamento e a coleta de esgoto também devem alcançar 90%.
Atualmente, cerca de 16% da população brasileira não têm acesso à água potável e 44% não são servidos de esgotamento sanitário, segundo dados no portal do Snis (Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento).
O prazo para cumprimento das metas, contudo, poderá ser acrescido de mais sete anos (até 2040), caso fique comprovado inviabilidade técnica ou financeira.
O custo estimado da universalização dos serviços é estimado em cerca de R$ 700 bilhões, o que leva em conta a realização de aportes para expansão da infraestrutura e recursos para recompor a depreciação dos ativos existentes.
As cifras criaram expectativas para a economia. Em razão das carências do setor, o marco do saneamento foi visto como um ponto de estímulo do crescimento e impulso para a atração de novos investimentos.
O QUE MUDOU NOS CONTRATOS DE SANEAMENTO?
Os municípios são os responsáveis pelos serviços de saneamento e, no modelo anterior, podiam celebrar contratos com empresas estaduais sem licitação. Com o novo marco, isso deixou de ser permitido, abrindo assim mais espaço para empresas privadas competirem pelos contratos.
A legislação determina a realização de licitação, com participação de prestadoras públicas e privadas, e acaba com o direito de preferência das empresas estaduais.
Na prática, a medida extingue o chamado contrato de programa, que permitia às companhias estaduais fornecerem os serviços de água e esgoto sem concorrência direta.
Esse é um dos pontos que entrou na mira do novo governo. Há a expectativa de um revogaço de dispositivos por meio de decretos para garantir a possibilidade dos contratos de programa.
A justificativa da equipe de transição é que o marco atual discrimina empresas públicas em processos licitatórios.
Mário Saadi, sócio do Cescon Barrieu Advogados na área de infraestrutura, explica que as empresas privadas não eram proibidas de participar do setor de saneamento anteriormente.
No entanto, historicamente, os serviços ficavam na mão de companhias estaduais, o que, na visão dele, ocorria por motivos políticos, não técnicos.
“Isso fez com que os investimentos ficassem aquém daquilo que o país precisava”, afirma. “Havia contratações diretas com regras pouco claras em relação a investimentos e metas que precisavam ser cumpridas, e sem regulação incisiva.”
O marco obrigou a realização de licitações, mas permitiu que os contratos existentes na época pudessem ser continuados, desde que as empresas comprovassem, até 2022, a viabilidade econômico-financeira para atingir as metas de universalização.
De 2019 para cá, a participação do setor privado no atendimento à população passou de 14% para cerca de 23%.
Segundo a Abcon (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto), em dois anos, foram realizados 21 leilões de concessões em 244 municípios.
QUEM É RESPONSÁVEL PELA REGULAÇÃO DO SANEAMENTO?
O marco do saneamento básico determinou que cabe à ANA o papel de criar as normas para todas as esferas da administração pública -municipal, estadual e federal- e ajudar na padronização das regras do setor.
A agência é uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional, que opera com autonomia administrativa.
O deputado federal eleito Guilherme Boulos (PSOL-SP), que integrou o grupo de transição, criticou o modelo nas últimas semanas. “É prejudicial você ter uma agência reguladora como a ANA com superpoderes e sem controle da sociedade”, disse, em novembro.
O novo governo cogita transferir essa competência para um novo departamento vinculado ao Poder Executivo, a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. Na avaliação de críticos, isso pode permitir que a execução de contratos fique submetida a interesses políticos da administração federal.
AINDA FALTAM REGULAÇÕES PARA O MARCO DO SANEAMENTO?
Na época da aprovação do marco, a expectativa era que as medidas passassem a vigorar já no ano seguinte, em 2021. No entanto, como é comum, a implementação de uma nova lei depende de regulamentações e edição de atos normativos.
Segundo Saadi, já foi publicado um decreto sobre como deve ocorrer a alocação de recursos públicos federais em projetos estaduais e municipais. Além disso, outros textos foram editados para atualizar as competências da agência reguladora.
“Para os próximos dois anos, a ANA tem alguns pontos a regulamentar, que vão desde disciplina de perda de água até processos de revisão tarifária”, afirma. “Fora isso, eu não tenho muita dúvida em dizer que o novo marco está pronto.”
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