GIOVANA GIRARDI / SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Marina Silva volta a assumir em 2023 o mesmo cargo no governo federal que ocupou entre 2003 e 2008 diante de um leque de problemas ambientais parecido com o de 20 anos atrás, mas agora com um grau de complexidade muito maior.
Quando Lula anunciou, em dezembro de 2002, que a senadora acreana pelo PT seria ministra do Meio Ambiente -o segundo nome a ser apresentado, logo depois do titular da Fazenda, Antonio Palocci-, o presidente recém-eleito passou a mensagem de que a pauta ambiental teria peso no governo.
Marina, então com 44 anos e um histórico de luta em defesa dos povos tradicionais contra a ocupação predatória da Amazônia -iniciada junto ao líder seringueiro Chico Mendes-, tinha pela frente um desmatamento na Amazônia que ela classificava como assustador.
Apenas no período de agosto de 2001 a julho de 2002, mais de 20 mil km2 de floresta tinham sido derrubados. Nos 12 meses seguintes seriam mais 25 mil km2. O ápice do mandato –e o segundo maior valor da série histórica– seria atingido entre agosto de 2003 e julho de 2004: 27,8 mil km2.
Foi diante desse quadro que Marina e equipe muito rapidamente entenderam qual tinha de ser sua principal entrega.
“Se não conseguíssemos conter o desmatamento, seria como se não tivéssemos conseguido mais nada. Era o nosso ‘Armageddon’. E uma das conclusões a que chegamos ao analisar o que já tinha sido feito é que não poderia ser um plano setorial, puramente do Ministério do Meio Ambiente. Tinha de ser uma política transversal”, disse Marina à Folha em outubro deste ano.
Ela e sua equipe elaboraram o PPCDAm (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal), lançado em 2004. O plano foi o caminho das pedras que levou à redução do desmatamento de modo consistente pelos oito anos seguintes, atraiu investimentos externos e levou à criação do Fundo Amazônia.
Em 2012, já na primeira gestão Dilma Rousseff, o desmatamento caiu para menos de 5.000 km2, o menor valor da série histórica –uma redução de 83% em relação a 2004. As emissões de gases de efeito estufa no Brasil mudaram de patamar, e o país assumiu liderança nas negociações climáticas internacionais.
Tudo consequência de medidas iniciadas por Marina, mas a essa altura ela já tinha deixado o governo, após conflitar com uma agenda desenvolvimentista que crescia, capitaneada principalmente por Dilma, que na época era ministra da Casa Civil.
Em 2008, diante de um quadro político bem diferente do de 2002, Marina entendeu que seu trabalho estava “dificultado pela falta de apoio à política ambiental dentro do próprio governo”, o que a fez pedir demissão.
A justificativa, que aparece em vídeo no seu site de campanha à deputada federal por São Paulo neste ano, sempre foi exposta de maneira muito transparente pela ex-ministra. O governo havia deixado de lado a preocupação com o ambiente.
Marina rompeu com Lula, com o PT, concorreu à presidência em 2010, 2014 e 2018 -e sofreu uma campanha difamatória justamente pelas mãos do partido. Na última tentativa à Presidência, em 2018, com votação baixa, parecia ter chegado ao fim da carreira política.
O desmonte da política ambiental do governo Bolsonaro trouxe, no entanto, até por contraste, Marina e todos os ex-ministros do Meio Ambiente à tona.
A retomada das relações entre Lula e Marina nas eleições deste ano se deu nesse contexto. O presidente eleito buscou mostrar que era o oposto de Bolsonaro nesta matéria e colocou o tema ambiental e climático nas prioridades, incorporando sugestões da ex-ministra. Foi o que garantiu o apoio dela ao petista, que estava em busca de uma frente ampla.
Apesar de ter priorizado o tema durante a campanha –pegando emprestado o prestígio justamente de Marina para cacifar seus compromissos–, Lula demorou a confirmar o nome dela para o MMA.
Teria sofrido pressão do PT e do “mercado”, que a considerariam radical demais. Chegou a oferecer a pasta para Simone Tebet (MDB), senadora ligada ao agronegócio, mas voltou atrás.
Marina sempre destaca como um dos motivos para o sucesso do PPCDAm a sua transversalidade, por 13 ministérios, sob coordenação política da Casa Civil e executiva do MMA. Nas bases, três pilares: monitoramento e controle ambiental; ordenamento fundiário e territorial; e apoio a atividades produtivas sustentáveis.
Basicamente os dois primeiros foram os que mais funcionaram, com intenso trabalho de fiscalização e combate aos crimes ambientais e com a criação de barreiras para o avanço do desmatamento -as unidades de conservação.
Vinte anos depois, a política ambiental está desmantelada, os mecanismos de fiscalização, enfraquecidos, e nenhuma unidade de conservação foi criada no governo Bolsonaro. Além disso, há pressões para afrouxamento das regras de regularização fundiária –que podem favorecer grileiros–, e o crime ambiental se associou ao crime organizado, ficando mais armado, perigoso e ousado.
Marina sabe que só reativar o PPCDAm, abandonado por Bolsonaro, não será suficiente. O plano deve continuar sendo a base, mas precisará ser atualizado com políticas de desenvolvimento sustentável da região que, na prática, nunca funcionaram em escala.
“A realidade é completamente mais grave do que tínhamos em 2003, porque tem vários componentes que se cruzam”, disse Marina na mesma entrevista à Folha em outubro. “A realidade de um governo que passou quatro anos desmontando estruturas –não só do ponto de vista da governança, mas dos recursos humanos, da gestão. A realidade em que o discurso vigente foi para empoderar os criminosos, enfraquecer os ambientalistas, as comunidades locais. Quem cometeu crimes viveu quatro anos com a certeza da impunidade.”
Sob Bolsonaro, o desmatamento voltou a superar a barreira dos 10 mil km2 e, em quatro anos, cresceu 60% na comparação com os quatro anos anteriores. Os dados de queimadas e de alertas de desmatamento dos últimos meses deixam evidente que, no campo, a guerra está armada. Desde agosto, com a perspectiva de mudança de governo, a destruição da floresta cresceu e bateu os maiores valores para os últimos anos.
Ao apresentar suas propostas para Lula, Marina defendeu a necessidade de essa agenda ser incorporada por todo o governo. Ela sabe que, sem o apoio do agronegócio, dos planos de infraestrutura, de expansão de energia, não terá como virar a chave não só na Amazônia, mas no combate ao desmatamento em todos os biomas e à crise climática.
Há 20 anos, nesta Folha, o colega Marcelo Leite escreveu, ao comentar a nomeação de Marina, que era preciso ir “além das aparências” para garantir que as questões ambientais tivessem peso no governo.
“Pouco adianta ter lá uma personalidade, se sua função se reduzir a mitigar efeitos adversos de políticas de desenvolvimento incompatíveis com a preservação da Amazônia -ou do cerrado, do Pantanal, da mata atlântica- pensadas e decididas pelos vizinhos da Esplanada, sem participação real do MMA”, escreveu Leite.
Essa premissa continua sendo verdadeira. Vale prestar atenção, por exemplo, em como vai se comportar a Casa Civil, tão fundamental para o PPCDAm nos anos 2000, agora sob a batuta de Rui Costa (PT).
A gestão do ex-governador da Bahia foi bastante permissiva com o desmatamento do cerrado no estado, liberando licenças de supressão de vegetação para a expansão do agronegócio, inclusive sobre territórios de povos tradicionais.
Também vai ser interessante ver como será a relação com o senador Carlos Fávaro (PSD-MT), que deve assumir o Ministério da Agricultura. Fávaro foi relator de um projeto que amplia tanto as possibilidades de regularização fundiária que ganhou o apelido, por ambientalistas, de PL da grilagem.
A ver se a prioridade ambiental vai resistir aos primeiros embates de interesses do setor.
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