O Conexão Sagres desta semana destacou os cenários, os desafios e os avanços da equidade de gênero no Brasil. Um dos temas de maior destaque entre as convidadas foi a monetização da misoginia por meio das redes sociais. O programa recebeu a promotora e integrante do Núcleo de Equidade de Gênero do Ministério Público do Estado de Goiás, Simone Disconsi, e a professora do Instituto Federal de Goiás em Goiânia e especialista em educação e estudos feministas, de gênero e igualdade racial, Janira Sodré.

Assista o programa:

“O incrível é perceber a quantidade de adesão a esse movimento, isso é inacreditável. A gente se depara com essa realidade, entra para assistir e ouve o que a pessoa está vendendo e pensa que não é possível isso ter repercussão. E é assustador a repercussão que isso tem”, destacou Disconsi.

Sodré explicou que uma coalizão política entre mulheres no mundo digital é importante, pois grupos masculinos que na década de 90 eram submersos em chats na deep web ganharam adeptos nos últimos anos e agora estão presentes na “internet superfície”.  

“Hoje eles vieram para a internet de superfície com esse título de Red Pills. São coaches, consultores, homens que dão palestra e que estão monetizando. Ou seja, eles estão fazendo dinheiro em cima de manuais de instrução para homens jovens sobre como odiar e subjugar as mulheres, sobre como não respeitar uma mulher. Sobre como se relacionar com uma mulher que seja dócil, que seja submissa e a gente pensava que isso estava no passado da humanidade”, pontuou a professora.

Red Pills

Na tradução literal para a língua portuguesa o termo Red Pill significa pílula vermelha. Segundo a BBC, o termo faz uma referência ao filme Matrix (1999). Um dos personagens desta ficção científica precisa fazer uma escolha entre duas pílulas. Ao tomar a pílula azul (blue pill) o personagem segue em um mundo de ilusões e ao tomar a pílula vermelha (red pill) o personagem retorna a realidade.

O sentido da cena na ficção científica com a misoginia é apontado na associação do termo com a “opressão do feminismo” sobre os homens. Desta forma, o movimento que se autointitula Red Pills ressignifica o termo do filme para destacar uma “superioridade e manipulação das mulheres” sobre os homens. E assim, a pílula vermelha seria a libertação dos homens dessa manipulação.

O termo Red Pill ganhou mais visibilidade nas últimas semanas com as repercussões de ameaças feitas pelo coach Thiago Schutz contra a atriz Livia la Gatto. No dia 13 de fevereiro, a artista publicou uma paródia sobre os conteúdos do movimento. Em um de seus vídeos, La Gatto cita o “man going their own way”, conhecido pela sigla MGTOW, que significa “homens seguindo o seu próprio caminho” sem as mulheres.

Após a publicação, a atriz divulgou print com uma ameaça feita por Thiago Schutz pelo direct do Instagram. A mensagem dizia para ela retirar o conteúdo das redes em 24 horas ou receberia “processo ou bala”. Thiago Schutz descreve no Instagram como escritor e possui um perfil chamado ‘Manual Red Pill Brasil’ com conteúdos sobre masculinidade.

Print (Reprodução/G1)

Misoginia

Misoginia é o conceito criado para falar sobre o ódio direcionado às mulheres. Grupos como o de Thiago Schutz revelam um avanço de ideias contra as mulheres nas redes sociais com muitos adeptos. As especialistas indicaram que muitas vezes as ideia e as ameaças assim disseminadas se concretizam em outros crimes, como o feminicídio.

Um levantamento do Monitor da Violência e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Núcleo de Estudos da violência da USP (NEV-USP) e o portal de notícias G1, mostrou que o Brasil registrou 1,4 mil feminicídios em 2022, sendo esse o maior número registrado desde que a lei entrou em vigor, em 2015. Isso significa uma média de 1 mulher morrendo a cada seis horas.

A lei n°13.104 incluiu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio em 2015. A legislação entende como feminicídio crimes contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, por razões que envolve violência doméstica e familiar e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Mais que opinião

A promotora Simone Disconsi relatou que o crime de misoginia é preocupante e destacou que a ação criminosa passa do limite de ser “uma simples opinião”. Além disso, Disconsi avaliou que é um crime que vai desde a ameaça a outros tipos de discriminação e pontuou o papel importante do judiciário diante desses casos..

“Temos que pensar em educar, trabalhar no sentido da ética e da conscientização, mas a lei não pode se furtar de aplicar as suas sanções com a dureza que os casos merecem. Porque uma das coisas que impede que esse movimento tome corpo e tenha um impacto importante dentro da sociedade, é exatamente o fato de você não ter mecanismos suficientes e eficientes de punição, que servem muitas vezes como um elemento pedagógico para que essas situações deixem de acontecer”, disse.

Prática da lei

Para a promotora, a Justiça ainda age de forma tímida diante dos crimes de racismo e contra as mulheres. Disconsi então relacionou essa falta de eficiência aos casos de pornografia infantil, que são tratados com rigor quando descobertos, mesmo se praticados na deep web.

“A pornografia infantil é um crime e na deep web a gente sabe que ela acontece. Mas quando ela vem à tona, as autoridades conseguem aplicar a lei de uma forma bem mais eficiente, com operações, prisões e apreensões de computadores. E a gente sempre ouve e vê acontecendo na prática. Nesse tipo de situação que envolve misoginia, racismo e outras práticas criminosas, a nossa atuação como autoridades de segurança pública ainda é muito tímida”, contou. 

O problema não é a lei. Segundo a promotora, a legislação já existe e também já houve medidas para agravar a tipificação dos crimes. No entanto, ela avaliou que ainda é necessário fazer um trabalho prático com mais eficiência.

“O legislador está fazendo a sua parte, mas a sociedade ainda não enxergou a necessidade disso acontecer de fato. Então quando acontece aquele movimento contrário vem aquela ideia de que são as mulheres raivosas, são pessoas histéricas, que é uma brincadeira ou um deboche. Tem a questão do racismo e do machismo recreativos que estamos vendo acontecer e toleramos como se aquilo fosse um lugar onde ninguém pode mexer. Então eu sinto que a gente tem um desafio muito grande ainda em se tratando de relações jurídicas e de segurança pública em relação a esses atos que são praticados”, afirmou.

Influência das redes

Thiago Schutz é seguido por 341 mil pessoas (Foto: Instagram/@manualredpill)

Tanto Simone Disconsi quanto Janira Sodré destacaram a importância das redes sociais para a prática dos crimes, mas ao mesmo tempo ressaltaram o ambiente virtual como um lugar importante para combater essas ações criminosas. As redes sociais são um campo aberto para qualquer tipo de influência. O tempo todo são despejados na internet uma diversidade de conteúdos a livre escolha para quem quiser acessar.

 Thiago Schutz por exemplo possui muitos seguidores nas redes: 341 mil pessoas seguem os conteúdos do coach sobre masculinidade. Para Janira Sodré, é importante pensar nesse avanço das ameaças contra as mulheres no mundo digital porque essa ação é um reflexo que acontece fora da internet. Com o ODS 5, a humanidade caminha para um desenvolvimento sustentável do planeta que busca a produção de equidade para as mulheres.

“Quando a gente vê que no mundo digital isso volta a eclodir quer dizer que não é só no mundo digital, porque o mundo físico informa o mundo digital. Todo aquele ódio represado não tem escolaridade que tire se não houver uma mudança ética e afetiva de um processo de ressocialização. Eu estou muito preocupada com esse movimento. Ele é muito impactante”, ressaltou.

Influenciadoras

Lívia La Gatto possui 299 mil seguidores em uma rede social (Foto: Instagram/@livialagatto)

Livia La Gatto é atriz, roteirista e produz conteúdos de comédia nas redes sociais. A artista tem 299 mil seguidores que acompanham suas produções, como as paródias que fez sobre os Red Pills. Para Janira Sodré, a ameaça que o coach fez à atriz é uma ideia de interromper mulheres e destacou que a legislação brasileira já possui um arcabouço jurídico que opera para a proteção nas redes sociais. Ainda assim, a professora ressaltou a importância de coibir a misoginia no ambiente virtual e pontuou que “é um tema de interesse para as mulheres a regulação da internet”.

“[A legislação] é amplamente relacionada ao crime de ódio, mas para pensar o crime de ódio contra as mulheres seja crime na deep web ou discursos de ódio na internet superfície, que é aquela ideia de uma palavra, de uma piada que autoriza a bala., porque o corpo dessa mulher merece o nosso desprezo. É isso que essas pessoas que se autointitulam redpills estão fazendo na internet”, afirmou.

Ao destacar o caso que envolve a Livia La Gatto, Sodré pontuou que os casos são mais comuns por meio das redes sociais e destacou a importância da participação e permanência dessas mulheres influenciadoras nas redes.

“Nós temos o papel de empoderar mulheres na internet, de fortalecer essa participação, de segui-las, comentá-las, tratá-las como atoras e sujeitas relevantes na vida política, na vida pública, fazendo essa disputa inclusive no ambiente digital”, disse.

Relevância das redes

A especialista em estudos feministas ainda ressalta a relevância do espaço virtual na vida das pessoas atualmente. De acordo com ela, na internet “todos somos cyborgs” e ninguém funciona sem uma câmera, um microfone e outras máquinas digitais e destacou a importância da educação desde a infância.

“A hora que o celular some a gente falta dar um ataque do coração porque hoje estamos interconectados com máquinas. Então é um cuidado que precisamos ter sobretudo com as novas gerações, porque a socialização das crianças, dos adolescentes e jovens se dá hoje muito mais fortemente na internet e não no ambiente escolar”, disse.   

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