JORNAL USP/José Adryan Galindo – Uma pesquisa que vem sendo realizada na Escola de Educação Física e Esportes (EEFE), da USP, pelo mestre em gestão de políticas públicas Donald Verônico Alves da Silva, revela que há uma sub-representatividade da população negra no futebol brasileiro, sobretudo entre técnicos.

A constatação foi feita a partir de uma bancada de heteroidentificação que analisou mais de mil profissionais entre treinadores, jogadores e auxiliares da Série A. A análise revelou uma discrepância entre treinadores pretos e a população preta do Brasil, em geral. Atualmente, Donald realiza o doutora sanduíche na USP e na Universidade Stirling, na Escócia, onde pesquisa sobre racismo no futebol. Sua pesquisa, que será defendida em julho deste ano, aborda A sub-representatividade de treinadores negros no futebol brasileiro. 

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, 45,3% da população do Brasil se considera parda, 43,5% se considera branca e 10,2% se identifica como preta. Porém, de acordo com a análise de Donald, em 2023 não havia nenhum treinador negro comandando um clube da série A do campeonato brasileiro de futebol. Em relação aos auxiliares, apenas 17% foram identificados pela pesquisa como pretos ou pardos, revelando a sub-representatividade.

A banca de heteroidentificação montada pelo pesquisador foi composta por três comissões de quatro juízes, pessoas de diferentes áreas de atuação, sem ter contato entre si. As análises foram realizadas entre outubro e novembro de 2023. E os dados se tornam mais preocupantes quando comparados ao número de jogadores negros da primeira divisão do futebol brasileiro. A análise de Donald apontou que 57% dos jogadores da elite do futebol brasileiro são pretos ou pardos. Ao relacionar esses números com o fato de que a maioria dos treinadores foram anteriormente atletas da sua modalidade, a sub-representatividade de técnicos negros fica ainda mais evidente.

Raízes familiares

Donald possui ligações familiares com o futebol, pois é filho de Abel Verônico, uma das grandes lendas do Santos Futebol Clube. Brasileiro nascido no México, país em que seu pai jogava na época de seu nascimento, o estudioso faz seu doutorado sanduíche orientado pela professora Flávia da Cunha Bastos, da EEFE, e pelo professor Claudio Rocha, da Universidade de Stirling. 

Ao iniciar sua pesquisa, Donald ficou surpreso com a pouca quantidade de informações raciais em relação aos profissionais do futebol brasileiro. “Não há nenhum banco de dados feito pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) que informe a cor ou a raça de jogadores, treinadores, assistentes ou quaisquer profissionais ligados ao futebol”, constata. Esta ausência de dados incomodou o pesquisador, já que as principais ligas de futebol e esportes populares contam com dados do quesito raça/cor dos profissionais. Além da pouca quantidade de dados fornecidos pelas instituições, Donald destaca a falta de pesquisas sobre o tema no País.

“Em relação ao Brasil, não tem informação sobre isso. São poucos dados sobre representatividade. Se você pesquisar no Google, tem uma notícia ou outra, mas não tem pesquisa científica sistemática para mensurar a representatividade, principalmente das organizações esportivas. O Brasil foi um signatário da conferência de Durban, na África do Sul, em 2001, e lá se comprometeu que traria dados, tanto é que hoje o IBGE tem várias informações. Graças a esses dados, a gente consegue fazer políticas preparatórias e afirmativas, como por exemplo as cotas. O problema é que isso não acontece nas organizações esportivas”, destaca Donald. E por suas raízes familiares, o pesquisador afirma ter vivenciado essa discriminação dentro de sua própria casa.

“Penso que meu pai foi uma dessas vítimas. Um talento que se perdeu no futebol brasileiro. Conforme eu vou estudando mais e aprendendo, vou entendendo muitas coisas que aconteceram com ele, e que acabaram influenciando toda a família e moldando quem eu sou”, afirma o pesquisador em entrevista ao Jornal da USP.

treinadores negros
Donald com seu pai, Abel Verônico (Foto: Arquivo pessoal)

Entre Gilmar, Pelé e Pepe

Abel Verônico, pai de Donald, foi jogador do Santos de 1965 a 1971, período em que jogou com ídolos do clube alvinegro como Gilmar, Pepe e Pelé, entre outros. Além disso, atuou em outros clubes do Brasil e México. 

Após a carreira como jogador, Abel foi treinador de futebol. Depois de um breve início no Brasil, ele foi convidado a treinar uma equipe da segunda divisão do Catar, onde passou três anos. O desempenho de Abel impressionou: foi campeão da segunda divisão catari e levou o clube às fases decisivas da Copa daquele país, sendo eleito o melhor treinador da temporada no Catar em seu segundo ano no comando da equipe. Após esse período, Abel regressou ao Brasil, onde esperava receber propostas de clubes brasileiros, o que não aconteceu.

“Eu via treinadores brancos que estavam lá também (no Catar), quando voltaram para o Brasil, sempre nessa roda de técnicos, vai para um time, vai para outro. O meu pai nunca. No máximo, recebia proposta de um time da terceira divisão ou categoria de base”, conta Donald. 

Além da discriminação sofrida pelo pai, Donald foi desde cedo incentivado pela sua mãe, Vera Lúcia Oscar Alves da Silva, jornalista e ativista do movimento negro, a estudar e participar de movimentos que combatem a desigualdade racial, o que o levou a se interessar ainda mais pelo tema. “Sempre tive essa questão do esporte por causa do meu pai e a questão do movimento negro e das relações étnicas raciais por conta da minha mãe”, relata.

Vera Oscar, como é mais conhecida, é até hoje militante do movimento negro e assumiu recentemente o cargo de conselheira no Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) da Secretaria de Justiça e Cidadania do Governo de São Paulo. Foi uma das ativistas que levou o projeto Educafro para a baixada santista, iniciativa que, além de aulas gratuitas para alunos negros que vão prestar vestibular, também ajuda pessoas pretas de todo o País a conseguir bolsas em universidades particulares. Donald chegou a dar aulas de inglês gratuitas no projeto, incentivado por Vera. “Minha mãe milita desde quando eu me entendo por gente”, diz.

Vindo de família atuante, o pesquisador também é irmão do jornalista Abel Neto, que trabalha como comentarista de futebol e apresentador de programas esportivos, atualmente na ESPN. 

Ainda na graduação de educação física na EEFE, Donald abordou em seu Trabalho de Conclusão de Curso a discriminação racial no futebol brasileiro. Seguiu o mestrado em gestão de políticas públicas, antes de decidir focar sua pesquisa na sub-representatividade de treinadores negros em seu doutorado. Ele conta que estudar as pautas raciais é o que o inspira no âmbito acadêmico. “Sempre acompanhei os casos de discriminação no esporte. Quando eu fui pensar no tema do doutorado, eu sabia que queria estudar gestão do esporte, então fiquei pensando no que me motiva. E é a questão racial”.

Racismo no esporte

O pesquisador defende que o racismo no futebol não é apenas reflexo do que acontece na sociedade, mas que foi uma ferramenta para afastar negros do esporte desde sua fundação e chegada ao Brasil.

“Eu reproduzia isso, mas quando comecei a ler, vi que o racismo que acontece no esporte não é reflexo, ele é parte do esporte. Desde o colonialismo, quando os europeus foram para outros países, o esporte foi utilizado para imposição de uma cultura étnico-racial. Então, o que acontece no esporte não é um reflexo, é uma ferramenta de reforço de uma hegemonia e de uma supremacia branca”, aponta o pesquisador.

Donald também comenta que o futebol não podia ser praticado por negros quando chegou ao Brasil, pois eles eram proibidos de ocupar os espaços onde o futebol era praticado. “O Charles Miller levou o futebol para o Brasil em 1894. Houve a chamada abolição da escravatura 1888, ou seja, o Charles Miller chegou com a bola de futebol alguns anos depois que houve a chamada abolição, mas foi uma abolição de fachada. Não teve nenhuma política reparatória. E nesse contexto chegou o futebol. O esporte era praticado nos clubes e negros não podiam entrar em clubes. Depois começou a ser praticado nas escolas, mas quais negros iam para a escola na época?”, questiona.

De acordo com o pesquisador, o futebol é atravessado pelo racismo explícito, mas principalmente pelo racismo estrutural, como descrito pelo escritor Silvio Almeida, que de forma velada afeta toda a sociedade. “Segundo Sílvio Almeida e outros autores, existe o racismo estrutural, o racismo institucional, e o racismo individual. O que acontece de maneira explícita como o que Vinícius Junior sofrer na Espanha é só uma parte dele. No futebol, no Brasil e com os treinadores não acontece só o racismo explícito, a sub-representatividade do treinador negro não é explícita, mas é um racismo velado”.

Donald defende que, para uma melhora nesse cenário, é necessário que sejam tomadas medidas em níveis diferentes da sociedade. “Para combater a sub-representatividade do treinador negro no futebol brasileiro, temos que ter medidas holísticas, macro, olhando para o racismo estrutural, mezzo olhando para os clubes, os processos internos, cultura e diversidade e micro, ou seja, individualmente”.

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