Arthur Barcelos
Arthur Barcelos
Apaixonado por futebol e geopolítica, é o especialista de futebol internacional da Sagres e neste espaço tem o objetivo de agregar os dois temas com curiosidades e histórias do mundo da bola.

Exilado pela guerra, clube não joga em casa há oito anos

Ao longo das últimas duas décadas, nenhum outro clube de futebol no leste europeu atraiu tantos brasileiros quanto o Shakhtar Donetsk, da Ucrânia. Desde o primeiro contratado, em 2002, logo após o inédito título da liga nacional, a agremiação do sudeste ucraniano desenvolveu uma relação especial de admiração e atração pelo talento futebolístico canarinho, que ajudou a pavimentar o seu domínio do futebol local.

Após Brandão, primeiro artilheiro sul-americano do Campeonato Ucraniano, a primeira leva de brasileiros em Donetsk contou com Matuzalém, Batista, Elano, Ivan, Leonardo, Jadson e Fernandinho, dois dos maiores ídolos do clube, entre 2004 e 2005. A segunda teve Luiz Adriano, maior artilheiro do Shakhtar, assim como Willian e Ilsinho, que também deixaram a sua marca.

No mesmo ritmo, também foram contratados Alex Teixeira e Douglas Costa, em 2009, Dentinho e Alan Patrick, em 2011, Bernard, Fred e os “estrangeiros” Ismaily, Taison e Marlos, que já estavam no futebol europeu, em 2013 e 2014. Entre outros, estes tiveram destaque e longa passagem por Donetsk – Alan Patrick e Ismaily, inclusive, ainda seguem no clube.

Ao longo de 20 anos, 39 brasileiros foram contratados, mais do que qualquer outra nacionalidade. Hoje são 13, incluindo Júnior Moraes, naturalizado ucraniano. Entre 2014 e 2018, entretanto, foram três temporadas sem caras novas até a leva que forma o elenco atual, com Dodô, Maycon, Fernando, Marcos Antônio, Tetê, Vitão, Marlon, Pedrinho, Vinícius Tobias e David Neres. Estes nem mesmo conhecem Donetsk.

Recheado de brasileiros, o Shakhtar foi campeão da Copa Uefa em 2009, o único título internacional do clube (Foto: Divulgação/UEFA)
Origens da dinastia

A pausa na busca pela mão de obra brasileira em 2014 teve um motivo e que ainda hoje repercute no Shakhtar: a Guerra Civil no Leste da Ucrânia. Também conhecido como Guerra em Donbas, região histórica que abrange o leito do rio Donets, o conflito isolou as regiões de Donetsk e Luhansk, ocupadas por rebeldes separatistas pró-Rússia, que estabeleceram as Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk.

Importante região mineradora e industrial, com vastas reservas de ferro e carvão mineral, o leste ucraniano tem um forte vínculo russófilo. O idioma predominante é o russo e as relações com Kiev nunca foram amistosas. As tensões se transformaram em conflito em abril de 2014, após meses de manifestações, chamadas Euromaidan, contra o governo de Viktor Yanukovych.

Natural de Donetsk e ex-governador do oblast antes de assumir a presidência do país, Yanukovych manteve um vínculo próximo com o governo Putin, em contraste com um sentimento nacionalista da população, liderado por grupos de extrema-direita, que buscava uma aproximação com a União Europeia. Impeachmado em fevereiro de 2014, se exilou na Rússia após a anexação da Crimeia à Federação Russa.

Rinat Akhmetov, presidente do Shakhtar, era um forte apoiador de Yanukovych. Membro do parlamento ucraniano por duas oportunidades entre 2006 e 2012, também é de Donetsk. Dono do conglomerado CKM, formado por empresas dos setores de mineração, energia, bancário, seguro e telecomunicações, Akhmetov era considerado o homem mais rico da Ucrânia, hoje com um patrimônio avaliado em 7 bilhões de dólares.

Viktor Yanukovych, na época primeiro-ministro ucraniano, festeja com Rinat Akhmetov, presidente do Shakhtar, um título do time em 2006 (Foto: Reuters)

Como muitos magnatas das oligarquias russas desde a dissolução da União Soviética, a origem dos negócios do empresário são desconhecidas. De uma família operária – o seu pai era mineiro -, cresceu a partir da influência do controverso Akhat Bragin, de quem herdou o cargo de presidente do Shakhtar. Considerado um mafioso em Donetsk, Bragin morreu após um ataque a bomba durante um jogo do clube, em outubro de 1995.

Apoiado por seus contatos políticos na região, Akhmetov estabeleceu um império no setor mineral e usou esse poder para alavancar o Shakhtar no cenário local. Durante a União Soviética, o clube de Donetsk não passou de uma equipe intermediária, com quatro títulos de copas e um da segunda divisão. A partir dos investimentos na contratação de jogadores, sejam destaques da liga ou jovens brasileiros, o time mudou de patamar.

Desde o primeiro título do Campeonato Ucraniano, conquistado na temporada 2001/02, o Dínamo Kiev, maior campeão do país, com 16 títulos ucranianos e outros 13 soviéticos, perdeu o seu domínio no campeonato. Após 2002, o Shakhtar venceu outras 12 edições, enquanto o rival da capital teve sete conquistas. Desde a criação da liga ucraniana, em 1992, apenas os dois clubes e o Tavriya Simferopol foram campeões.

Em 2009, com o quinteto brasileiro Fernandinho, Ilsinho, Jadson, Willian e Luiz Adriano, o time de Mircea Lucescu bateu o Werder Bremen, vice-campeão alemão, na final da Copa Uefa, em Istambul, o primeiro título de um clube ucraniano no torneio. Em uma decisão protagonizada por gols de jogadores do Brasil – Luiz Adriano, para o Shakhtar, e Naldo, para o Werder Bremen -, Jadson garantiu a conquista na prorrogação.

Pentacampeão entre 2010 e 2014, o Shakhtar estabeleceu um recorde na primeira divisão ucraniana e brilhou internacionalmente. Os investimentos também se expandiram para a estrutura, e Akhmetov construiu a Donbass Arena, inaugurada em 2009 e uma das sedes da Eurocopa de 2012. Um estádio moderno, foi elogiado durante o torneio e recebeu a melhor avaliação da Uefa. Na nova casa, o time se tornou imbatível em Donetsk.

Sob o comando de Akhmetov, o Shakhtar conquistou 13 títulos do Campeonato Ucraniano, 13 da Copa da Ucrânia e nove da Supercopa Ucraniana, além da Copa Uefa. Os conflitos estabelecidos em 2014, contudo, interromperam o período de domínio dos ‘mineiros’. A crise na região também desequilibrou as contas do clube, que diminuiu consideravelmente o investimento em contratações e sofreu perda de receitas importantes.

Um clube exilado

2 de maio de 2014. Já em meio a muitos protestos e tensão ao redor do país, 18 mil pessoas acompanharam a vitória por 3 a 1 do Shakhtar sobre o Illichivets Mariupol, com gols de Luiz Adriano e Douglas Costa. A partida, válida pela 28ª rodada do Campeonato Ucraniano, a penúltima da temporada, sacramentou o quinto título seguido do clube, que depois daquele dia nunca mais entrou na Donbass Arena. Ou mesmo em Donetsk.

Entre 2013 e 2017, Akhmetov perdeu mais do que o dobro de sua fortuna. Então considerado o homem mais rico da Ucrânia, o patrimônio do magnata caiu mais de 10 bilhões de dólares. Desde 2018, no entanto, o empresário conseguiu recuperar boa parte do valor de sua riqueza. Período que coincidiu com o retorno dos investimentos do Shakhtar no mercado, que chegou a ficar três janelas sem realizar grandes contratações.

Donbass Arena, casa do Shakhtar entre 2009 e 2014, hoje é ocupada pela República Popular de Donetsk e não recebe um jogo oficial há oito anos (Foto: Divulgação/UEFA)

Desde 2007, o nome Shakhtar marcado no escudo do clube está escrito em ucraniano, apesar da comunicação ainda ser realizada em russo, língua predominante em Donetsk. Todavia, essas ações nunca foram bem recebidas pelos ‘ultras’, a ala mais fanática dos torcedores. Por isso, Akhmetov sofre uma grande rejeição da torcida ao tentar se desassociar de Yanukovych e não apoiar a República Popular de Donetsk (DPR).

O magnata também é odiado por tirar o clube de Donetsk, uma ação tomada sob pressão da Uefa por conta dos conflitos na região e para não estar associado a um eventual apoio pró-Rússia. Enquanto tentou se esforçar em manter um vínculo com a cidade e mandar suprimentos para a população, o desgaste se tornou irreversível ao ponto do Shakhtar perder contato com a torcida local e a própria administração de seu estádio.

Abandonada pelo clube em 2014, a Donbass Arena sofreu diversos danos após confrontos entre tropas ucranianas e rebeldes pró-Rússia, que levou à destruição da região próxima ao aeroporto de Donetsk, assim como ao próprio centro de treinamento do Shakhtar, cujo prédio principal foi desmoronado. Hoje com grande parte da estrutura da cidade recuperada, o estádio do Shakhtar está sob a jurisdição da DPR, reformado em 2017.

Em 2014, o clube se deslocou para Lviv, no oeste do país e a mais de 1 mil quilômetros de Donetsk. Já em 2017, voltou a se aproximar ao realizar seus jogos como mandante em Carcóvia. Apesar disso, seguiu hospedado na capital. Com os estádios fechados pela pandemia, aconteceu o pior para os mais fanáticos: a transferência para o estádio Olímpico de Kiev, casa do rival Dínamo e da seleção, pintado com as cores ucranianas.

Hoje a casa do Shakhtar carrega as cores da Ucrânia, o estádio Olímpico de Kiev (Foto: Divulgação/UEFA)
“Eu sinto muita falta da minha cidade Donetsk. Eu amo muito essa cidade, vivi lá por 47 anos. Mesmo tendo a oportunidade de morar em qualquer lugar do mundo, escolhi Donetsk. Eu sempre disse que a nossa cidade é a mais bonita, o meu lugar favorito. E o melhor, o povo é maravilhoso. Eu amo Donetsk e sinto muita falta. Uma vez que a paz seja estabelecida na Ucrânia, espero que um dia possamos retornar e jogar na Donbass Arena”.

– Rinat Akhmetov em entrevista à Shakhtar TV durante o aniversário de 85 anos de fundação do clube, em janeiro de 2021

No início deste ano, as tensões entre Ucrânia e Rússia voltaram a aumentar dramaticamente. Segundo estimativas, cerca de 100 mil tropas russas cercam o território ucraniano, da Crimeia à Belarus, além de 15 mil separatistas em Donbas. Com a possibilidade de uma trágica guerra em breve, o sonho de Akhmetov parece distante de se tornar realidade. Enquanto isso, o Futbolniy Klub Shakhtar segue cada vez menos Donetsk.

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