A “fria” dos atletas brasileiros nas Olimpíadas de Inverno

Segundo a linguagem popular brasileira, entrar em uma “fria” ou em uma “friagem”, significa embarcar em algo que tem grandes chances de não dar certo. Mesmo assim, muitas são as pessoas que tentam sua sorte contra as probabilidades, e por muitas vezes, são bem sucedidas. Mas a matemática é cruel. Jogando contra os números, inevitavelmente em algum momento, você vai perder.

Mas o que realmente gostamos nas histórias é que elas estão cheias de “azarões” lutando contra as possibilidades. Desde Davi contra Golias, até mesmo em livros, filmes, séries, novelas e principalmente nos esportes, torcer para quem tem menos chances de vencer nos faz pensar ser a coisa certa e nos alimenta com esperança.

Na próxima sexta-feira (4) começam os XXIV Jogos Olímpicos de Inverno na cidade de Pequim, na China. A participação brasileira em Jogos de Inverno sempre vai chamar a atenção por um simples fato: não há neve no Brasil. Sim, é sabido que em alguns dias no inverno cai gelo nas serras Gaúcha e Catarinense, o que certamente não é suficiente para a prática de esportes de inverno no Brasil.

Delegação brasileira nas Olimpíadas de Inverno de 2018 em PyeongChang na Coreia do Sul. Foto: Divulgação COB.

Na edição de 2022 dos Jogos a delegação brasileira contará com 11 atletas que vão para Pequim disputar modalidades esportivas de inverno. “Mas gelo e neve não combinam com o Brasil, o que eles vão fazer lá?” questiona uma entrevistada. “Só conheço a patinação no gelo porque vi na TV, não conheço as outras modalidades, nem sei o que são,” revela sincera.

As respostas são naturais para pessoas que vivem em um país tropical. Esportes de inverno não são populares em temperaturas de 40 graus. Mesmo compreendendo o contexto histórico e a importância para a carreira de um atleta profissional participar de competição a nível mundial como os Jogos Olímpicos, tem sempre alguém que desdenha.

“Por quê estão indo pra lá, não cansam de passar vergonha?” questiona um entrevistado. “Estão achando que são os novos Jamaica Abaixo de Zero. Só vão para passear e gastar dinheiro,” ralha outro.

Da imensa galeria de bons filmes dos anos 90, um dos mais queridos é “Jamaica Abaixo de Zero”. Lançado em 1993 pelos estúdios Walt Disney e intitulado originalmente de Cool Runnings, a comédia-drama conta a história do primeiro time 100% negro de bobsled, onde 4 amigos jamaicanos lutam para poder participarem dos Jogos Olímpicos de Inverno no Canadá.

Inspirado em eventos reais o filme é leve e divertido, mas com sérias lições de vida. Uma comédia que consegue se sobressair com méritos dentro de seu estilo, seguindo características singulares da Disney, tendo todo um cuidado com o roteiro e uma direção eficiente.

+ Confira o trailer do filme (em inglês)

Em comum, o esporte como fio condutor de histórias de glórias, fracassos, rivalidades, tensões e redenção. Todos aqueles ingredientes que movem paixões por todo o planeta assim que uma bola rola ou um trenó desliza a 140 km por hora. Entre outros pontos, o filme também aborda questões raciais, identidade nacional, estereótipos e superação.

O filme foi um grande sucesso no Brasil. Com lindas imagens de praias e trilha sonora com direito ao sucesso “I Can See Clearly Now” do músico jamaicano Jimmy Cliff, e claro a ausência de neve por aqui, fez com que os brasileiros se identificassem com o plano de fundo, imaginando quais dificuldades atletas brasileiros poderiam passar.

“I’m feeling very olympic today”

Sanka (Cool Runnings, 1993)

Mas o que muitos não sabem é o quanto este filme realmente foi importante para o desenvolvimento dos esportes de inverno no Brasil. Em 1997, Eric Maleson foi o primeiro atleta brasileiro do bobsled a se preparar para uma edição de Jogos de Inverno.

“Eles me inspiraram. Quando os vi, a primeira coisa que pensei foi: eu posso fazer isto também”, contou Maleson na época. Anos depois, Eric fundou a Confederação Brasileira de Desportos no Gelo e foi o primeiro piloto brasileiro de bobsled a competir em uma edição de Jogos Olímpicos de Inverno na cidade de South Lake City nos Estados Unidos em 2002.

Brasileiro Erick Malestron, pioneiro do Bobsled no Brasil. Foto: Reprodução Wayback Machine.

Não há grandes estruturas para atletas invernais treinarem no Brasil e, por conta disso, às vezes, não há formas viáveis destes se manterem no exterior. Equipamentos que simulam condições de treino aos de neve tornam-se imprescindíveis alternativas para quem sonha conquistar bons resultados em competições internacionais com pouca estrutura.

Além do clima, os atletas brasileiros que disputam esportes de inverno enfrentam dificuldades que vão de apoio financeiro, falta de patrocínios, além da adaptação de treinamentos a um país que não possui história em desportos invernais.

Mesmo com clima predominantemente tropical, o Brasil esteve presente em todas as edições da competição desde sua primeira aparição, em 1992 na França, onde disputou apenas provas de Esqui Alpino com 6 homens e 1 mulher, e vai para sua nona participação na competição. Na última Olimpíada, em 2018, 10 atletas representaram o país.

Apesar de muito treinamento e esforço por parte dos atletas, nenhuma medalha veio ainda para nosso território. Em 2022, há chances remotas de premiação, mas os atletas buscam superar o melhor resultado da história do Brasil – um nono lugar no Snowboard, com Isabel Clark, em Turim, 2006.

Trinta anos depois de sua primeira participação, a delegação brasileira vai ao Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim com onze integrantes. Entre estreantes e veteranos, os brasileiros buscam o primeiro pódio na história em uma edição de inverno. Os atletas que vão competir pelo Brasil estão espalhados por cinco modalidades: esqui cross country, esqui estilo livre, esqui alpino, skeleton e bobsled. 

Time Brasil de bobsled em ação nas Olimpíadas de Inverno de 2018. Foto: Divulgação COB.

A delegação possui alguns nomes experientes, como o de Jaqueline Mourão. A mineira de 46 anos vai para a oitava participação dela em Jogos Olímpicos, sendo seis de inverno e dois de verão. Ela é um dos nomes do esqui cross country junto de Manex Silva. Mourão é a atleta brasileira com mais participações em Jogos Olímpicos.

Bruna Moura seria outra atleta a competir em Pequim, mas a atleta sofreu um acidente de carro a caminho do aeroporto e está fora da Olimpíadas. Segundo nota do COB, a atleta sofreu fraturas nos pés e no antebraço, está internada e se recupera bem. No seu lugar vai competir Eduarda Ribeira.

Outro que retorna a Pequim depois de catorze anos – e em outro clima – é Jefferson Sabino. Em 2008, ele defendeu o Brasil no salto triplo. Agora, é um dos cinco integrantes do time brasileiro de bobsled, que também conta com Erick Vianna, Edson Martins, Rafael Souza e Edson Bindilatti, que vai para sua quinta e última Olimpíada de Inverno da carreira.

+ Conheça o Time Brasil em Pequim 2022

Com quatro edições de Jogos Olímpicos de Inverno no currículo, o baiano de 42 anos Edson Bindilatti conheceu os esportes de neve e passou a amar o bobsled da mesma maneira que muitos brasileiros que cresceram na década de 1990: através do filme “Jamaica Abaixo de Zero”.

Nascido em Camamu, cidade localizada 200 quilômetros ao sul de Salvador e onde o gelo e neve jamais foram vistos, ele também começou no atletismo. Sua carreira no bobsled teve muitas semelhanças com o filme, além do fato do piloto jamaicano ser do atletismo e, da Jamaica ser um país de clima tropical, como o Brasil.

O atual piloto do trenó brasileiro se recorda de seu primeiro contato com o frio na cidade de Lake Placid, nos Estados Unidos. “Na primeira vez que saí na rua em Lake Placid, foi igual a cena do filme que os jamaicanos saem do aeroporto. Senti aquele frio, coloquei a blusa e quase congelei,” relembra o baiano. 

Outros nomes da delegação são: Nicole Silveira, do skeleton, Michel Macedo, do esqui alpino e Sabrina Cass, do esqui estilo livre.

Nicole Silveira compete no Skeleton e é esperança de medalha para o Brasil. Foto: Divulgação arquivo pessoal.

Mas o espírito que envolve toda a mística do esporte olímpico muitas vezes não tem explicação. Ou melhor, tem sim.

As organizações internacionalistas buscavam a resolução de conflitos, tanto de ordem interna como externa, pelo uso da razão e das leis, e não pelas armas. Dentro dessa lógica a competição esportiva era uma forma racionalizada de conflito, sem o uso da violência.

Foi, sobretudo, devido ao renascimento do interesse pelos estudos clássicos e pela força que a cultura helênica exercia sobre a cultura europeia, que levaram Pierre de Coubertin a tomar para si a tarefa de organizar uma instituição de caráter internacional com a finalidade de cuidar daquilo que seria uma atividade capaz de transformar a sociedade daquele momento: o esporte.

Se os brasileiros que vão competir em Pequim estarão “entrando em uma fria”, não podemos responder. As razões no esporte vão muito além de ganhar ou perder, não havendo respostas exatas.

Mas o certo é que, assim como aconteceu com Pierre de Coubertin, ações como essa fazem com que os atletas brasileiros tenham seus nomes marcados e serão lembrados para sempre na história do esporte mundial.

Rafael Rodrigues é jornalista, apaixonado por esportes, cinema, música e história. É especialista em esportes olímpicos e americanos, sobretudo futebol americano.

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