Luciano Cáceres, Pablo Echarri e Letícia Sabatella: onde colocar o desejo? (Foto: internet/divulgação)

Ontem (20/02), às 19h, o Lisandro Nogueira e o pessoal dos Cinemas Lumiére deram a largada na 12a edição da Mostra “O amor, a morte e as paixões”. Tradicionalmente realizado no Shopping Bougainville, dessa vez o evento está ocorrendo no Banana Shopping, lá na Rua 3 com a Araguaia.

Talvez a mudança de local cause uma leve queda na frequência do festival, que bate recorde de público ano após ano, mas é preciso dizer: a estrutura está fantástica. Não é exagero dizer que as salas de cinema são as mais novas da capital – ao menos em aparência – com telas enormes, ar condicionado trincando, ambientes limpos. Talvez haja uma dificuldade maior em relação à praça de alimentação, ou a estacionamento. Mas tudo isso acaba virando detalhe perto da quantidade de filmes disponíveis para escolher. Ainda tem pão de queijo, salgados e chopp Colombina para aproveitar.

Bom, deixando essa questão de lado, o filme da abertura foi “Happy Hour – Verdades e Consequências”, escrito e dirigido por Eduardo Albergaria. Pablo Echarri e Letícia Sabatella dividem os créditos principais, que ainda contam com o apoio de Chico Diaz, Luciano Cáceres e o prata da casa Pablo Morais. Pablo, que esteve presente à sessão, fez um importante (e inflamado) discurso sobre a importância da arte na vida do ser humano, e especialmente na dele, que teve formação básica também com aulas de balé na Escola de Arte Veiga Valle, aqui na capital. Pablo nasceu e viveu aqui até os 14 anos, quando então se mudou para o Rio e, de lá, engrenou de vez na carreira artística.

Olha, o filme é bacana. Digo assim, com entusiasmo titubeante, porque a sinopse (e o catálogo da Mostra) o definem como comédia e drama. E talvez o principal erro da obra seja não se definir entre um ou outro gênero, cambaleando entre os dois e sem se aprofundar em nenhum deles. Numa co-produção Brasil e Argentina, a obra consegue unir de forma muito mais harmônica e prazerosa os aspectos culturais e, de certa forma, o clima (o espaço físico é a cidade do Rio de Janeiro, mas há um agradável clima porteño permeando toda a obra, com seu tango, o sotaque de Echerri e Cáceres, ou constantes referências a Buenos Aires) de ambos os países do que os gêneros narrativos.

O tema é delicado: o desejo. Echerri interpreta o professor universitário Horácio, que mora no Rio com sua esposa, a deputada Vera (em interpretação no geral morna, mas com excelentes rompantes, de Letícia Sabatella). Por força do acaso, Horácio se envolve num acidente com o bandido “Aranha” (Pablo Morais), e vem a ser considerado pelos jornais como o herói que o capturou. Ganha as manchetes, vira uma celebridade. Esse fato, aliado ao desgaste de um relacionamento de mais de 15 anos, o faz mudar suas convicções. De repente, olha ele lá propondo um relacionamento aberto a Vera.

A questão da indecisão quanto ao gênero narrativo surge da fragilidade do roteiro, que também traz uma série de outros pontos fracos. Porque o tema é riquíssimo, e se bem explorado seria capaz de colocar o espectador em reflexões muito profundas! Sentimos a verdade e a boa-fé em Horácio, quando vai propor a sua esposa que ambos possam sair com outras pessoas. Há ali um desejo genuíno de dar vazão a impulsos, de ser feliz em última análise. Mas falta profundidade ao definir sua força motriz – em tese, a vida chata em que está inserido. Só que, olhando bem, a vida deles não é chata. O roteiro falha em definir esse peso nas costas, essa sensação de monotonia e desgaste. Não reconhecemos isso na tela em absoluto! De modo que, ao fim, as palavras de Horácio soam vazias – seja como aparente necessidade de justificar seu desejo por uma de suas alunas, seja por uma inocência em aceitar prontamente o que o hilário Ricardo, personagem de Luciano Cáceres propõe: aproveitar a vida.

captura de tela 2016 12 01 as 14.14.23Horácio e Vera: dizer a verdade dá o direito de fazer qualquer coisa? (Foto: divulgação/internet)

Há uma brincadeira com os nomes dos personagens, nesse sentido: Horácio, o poeta e filósofo grego, era vinculado à corrente epicurista, que pregava o poder do presente, do Carpe Diem. E Vera – o próprio filme traz isso, literalmente, no mote de campanha eleitoral da deputada – a Verdade. Uma frase da personagem ao marido talvez resuma o conflito entre desejo e verdade que o filme propõe: “Você acha que a verdade justifica qualquer coisa?” Ser sincero sobre os próprios desejos não traz a prerrogativa de satisfazê-los. Essa, talvez, seja uma das grandes reflexões as quais o filme falha em explorar.

Outro aspecto negativo é a unilateralidade da visão de mundo – e aqui, talvez eu fraqueje e deixe escapar algum SPOILER (se não quiser ler, pule para o próximo parágrafo!). O narrador é o próprio Horácio, fato que já propõe cumplicidade com o espectador desde o início. Mas o desejo é universal! É do homem, é da mulher: é do ser humano. E há na obra uma cristalização da vontade de Vera, tornando imutável o seu sentimento sobre o desejo em si. Percebe-se uma movimentação enorme do meio – ambiente de trabalho, ambiente familiar, exemplos, amigos, televisão – na tomada de decisão dos protagonistas, mas enquanto Horácio se apresenta como “o cara vulnerável, dos desejos em erupção”, Vera é previsível, irredutível, de desejos superficiais e petrificados. Jogaram nela a missão de simbolizar o pé na realidade, a resistência da tradição monogâmica – ainda que longe de ser uma figura austera e tradicionalista. Mesmo quando a história parece querer também dar a oportunidade de vê-la subvertendo a ordem em prol do desejo, isso vem plena e explicitamente justificado após. Como se o roteiro dissesse: essa mulher é um exemplo, porque é pura e casta, e seu desejo só verte em um sentido: o marido. Convenhamos, isso não existe. E fim do Spoiler.

Percebe o quão rica é a temática de “Happy Hour”? E o quão frustrante pode soar ser convidado para uma mesa de debates como essa, e não conseguir aprofundar?

Apesar de tudo, o filme diverte bastante! Há momentos memoráveis, de dar gargalhada mesmo. Um humor quase caricato, mas eficaz! Infelizmente, teve apenas um horário de exibição – ontem, na abertura – e segue seu circuito pelo mundo. Ainda essa semana, estreia em mais de 40 salas de exibição na Argentina, e retorna para lançamento oficial no Brasil apenas no final de março. Quem esteve atento à Mostra teve a oportunidade de assistir em primeira mão.

*Filme assistido na 12a Mostra “O amor, a morte e as paixões”