Há 23 anos, o projeto Missão Resgate da Paz acolhe mulheres viciadas em drogas em Goiânia. Elas são abrigadas por um período de sete meses em uma casa mantida por voluntários, e nesse tempo recebem acompanhamento médico e psicológico, além de cursos de qualificação profissional. Era o que a Maria José Duarte precisava, mas com uma condição: que pudesse estar com o filho o tempo todo.

“Se a missão não tivesse aceitado, eu jamais teria me tratado porque o pai do meu filho é ausente, fugiu, nos abandonou quando meu filho era um bebezinho de poucos meses. Sem a ajuda da missão aceitando meu filho eu jamais teria me tratado. Eu jamais teria visto que a verdadeira liberdade é ser sóbria, a beleza que é a vida sem entorpecentes”, afirma.

Hoje, Maria José, que é ex-acolhida da comunidade terapêutica Missão Resgate da Paz, sabe da importância de um processo de recuperação. Mas não era assim. Em entrevista à Sagres TV neste Dia Internacional de Mulher, ela relata que a dependência por substâncias psicoativas começou dentro de casa, em uma família completamente desestruturada.

“Eu não tive estrutura familiar, não tive pai presente, não tive mãe presente, fui maltratada por madrasta, e muita pobreza. Em suma, um lar bem desfeito foi o meu. Isso tudo não justifica, mas favorece o uso de drogas, o uso de substâncias. Eu só queria estar fora do mundo, só queria estar fora da minha realidade”, relata.

Maria José conta que passou duas décadas da vida tendo as drogas como combustível para seguir adiante, mesmo em viagens e no trabalho. “Passei 20 anos usando álcool, cocaína. A cocaína entrou na minha vida e foi uma paixão instantânea, me encantei com aquela droga, ela me realizou por um bom tempo. E assim seguiu a minha juventude. Viajei muitos lugares do mundo e sempre usando drogas. Fiz muitos trabalhos na Itália, na França, na Alemanha, e tudo usando drogas, ela estava sempre presente comigo, era uma forma que eu tinha de apagar a falta de estrutura que eu tive na infância, a minha realidade conturbada como pessoa mesmo”, relembra.

Ela relata que só começou a se dar conta do abismo no qual havia mergulhado e do próprio adoecimento quando ficou grávida, e o sentimento de culpa veio à tona.

“Eu passei a ter muita culpa, e o meu adoecimento ficou verdadeiramente palpável, porque eu já usava drogas com culpa, o que eu não tinha antes. Eu comecei a ter vergonha do uso, comecei a me marginalizar socialmente. Eu já não era boa o suficiente para trabalhar, para ter relações sociais com as pessoas. Me isolei no meu mundo de drogas”, afirma.

Maria José e o filho de seis anos (Foto: Facebook/Missão Resgate da Paz)

A assistente social e especialista em Políticas Públicas sobre drogas, Sherydan Luiza, afirma que a mulher sofre em dobro quando o assunto é uso de drogas.

“Esse estigma é duplamente reforçado, porque para a sociedade usar drogas é um comportamento desviante. Sendo desviante, subentende-se que a relação da mulher com o uso de drogas é uma questão de moral, anulando a sua realidade física e mental no âmbito do adoecimento. E o organismo da mulher funciona totalmente diferente do homem. Inclusive o uso de drogas em nós é potencializado. A mulher vicia mais rápido, temos menos água em nosso organismo, por isso o álcool tem um efeito maior, as doses são diferentes para homem e mulher no que diz respeito ao uso abusivo de álcool. O nosso cérebro adoece mais rapidamente”, afirma.

Hoje, Maria José está recuperada e pode contemplar a beleza da vida e a presença do filho com plenitude. Sherydan Luiza avalia que é preciso buscar ajuda antes que as perdas aconteçam.

“O que ocorre é que as pessoas buscam ajuda para tratar o problema por conta das suas perdas, pelas situações de grande sofrimento e perda, e não pela consciência real do nível de adoecimento. As pessoas usam drogas para buscar alívio para suas dores. As substâncias entram no lugar de remédios, só que um remédio que envenena, que vai adoecer quando a pessoa parte para o uso abusivo. Na história da Maria José não tem como nós desvincularmos a realidade social, o adoecimento social, familiar. O ideal é a mulher se perceber”, conclui.

Confira a entrevista na íntegra no STM #221 desta segunda-feira, 8 de março de 2021