(foto: divulgação/internet) 

Quinta feira passada, comentamos nos estúdios os filmes “Oito mulheres e um segredo”, de Gary Ross, e “Vingança”, de Coralie Fargeat. Dois filmes ressaltando mulheres. Inclusive, abordamos de leve essa questão. Mas, será?

O primeiro filme é um legítimo blockbuster. Amparado na franquia de sucesso de Steven Soderbergh (“Onze homens e um segredo”, e suas continuações), transportou o clima de roubos épicos para personagens femininas. Tenha certeza de que o objetivo maior foi o lucro, e não uma atenção aos crescentes movimentos feministas em Hollywood como o “Time’s Up” e o “Me too”. O que não é totalmente ruim, afinal de contas, faz parte das reivindicações desses movimentos os salários mais justos e equiparados aos dos homens, papéis relevantes e valorização de funções no set. Não interessa que seja num blockbuster ou num filme B. As mulheres estão lá, estão ganhando bem, tá tudo certo.

Mas daí vem o “Vingança”. Uma espécie de filme B, com roteiro por vezes engraçado (de tão absurdo), orçamento baixo. Mas, me dá licença: que filme!

Para começo de conversa, acho bacana que as duas obras sejam assistidas num período curto de tempo. Porque a importância de “Vingança” é ressaltada num contraste com um filme pretensioso como “Oito mulheres” – um filme bem feito, com atrizes lindas, em atuações convincentes. Um filme divertido, com bons diálogos, uma premissa envolvente, música bacana. Mas um filme de “sessão da tarde”, vamos colocar assim.

Dai você entra de cabeça em “Vingança”, um filme dirigido, roteirizado e montado por uma mesma mulher. Coralie é a dona da magia. E justamente por intenção dela, um filme que não tem a pretensão de se levar a sério ou de militar em favor de causa “X” ou “Y”. Simplesmente entra na sua sala e faz um estrago.

Eu nem vou perder muito tempo com “Oito mulheres”, porque esse daí você senta lá no seu sofá, assiste e é isso. Tá bom, um resumo pra você não se perder: Debbie Ocean (Sandra Bullock – sempre linda), irmã de Danny Ocean (que era o George Clooney lá nos outros filmes), é uma trambiqueira de marca maior. E arma um golpe perfeito para roubar um cobiçado colar de diamantes. Para isso, vai contar com a ajuda de suas amigas vividas por, dentre outras, nada menos que as deslumbrantes Cate Blanchett, Rihanna, Helena Bonham Carter e Anne Hathaway. O resto, você já sabe, porque se encaixa naquele clichê (até gostoso) de filme de roubo.

O “Vingança” não tem como definir. Até tem, correndo o risco de ser simplista: um grupo de riquinhos se aventura no deserto uma vez ao ano, para caçar. Dessa vez, um deles leva sua amante, Jenn (vivida pela Matilda Lutz – também linda, mas com uma outra missão aqui). Dai a coisa bagunça lá quando um deles estupra a Jenn, e ela é deixada para morrer no deserto. Mas não morre, e volta para caçar.

Tem muito exagero no roteiro. Mas é proposital. A quantidade de sangue, as cenas altamente sádicas, tudo ali tem um propósito e se junta ao visual para enriquecer a estória. É uma mulher caçando três caras. Toda a violência misógina do início é purgada na tela. Cada gota de sangue tem um peso, um significado. Tudo sob a batuta competente de Coralie – uma maluca. Às vezes, a gente até ri de nervoso.

Diz-se que o olhar cinematográfico é masculino. Ainda que o filme seja dirigido por uma mulher. Existem lá as razões para isso – não sei se concordo plenamente (mas o assunto é muito profundo). O fato é que aqui nessa vendeta, detalhes preciosos da desconstrução desse olhar feminino são adotados por Coralie, como numa pintura a óleo. A personagem de Jenn, por exemplo, é apresentada em closes sensuais em câmera lenta, chupando pirulito (aquele títpico clichê), mas no decorrer do filme assume uma outra sensualidade e sexualidade que passam longe de Pamelas Andersons. Não tem melões, não tem bunda de fora, mas ainda assim, a sensualidade está lá. Jenn se torna uma femme fatale, inegavelmente, mas sob o olhar de sua roteirista mulher. Lembra da Lara Croft lá do Tomb Raider? Ela é uma típica heroína construída por homens (nerds, ainda por cima). Uma pretensa protagonista que, em última análise, acaba retornando ao papel de objeto (o filme mais recente preocupa-se em reexaminar isso aí). Jenn não. Ela é a cura. 

E tem a cena final de perseguição na casa – meu Deus! O que é aquilo. Uma das cenas mais divertidas, tensas e completamente recheadas de significado que eu assisti nos últimos tempos. Só digo uma coisa (para não dar spoilers): baldes de sangue para todo lado. E um cara nu correndo de uma moça armada com um fuzil de longo alcance. Me diga: quando é que você viu, num filme de ação, um cara nu? Tá beleza, os caras vão chiar, mas isso daí é o ápice de uma construção fílmica pensando na desconstrução. O cara nu está lá, patético, escorregando de forma ridícula no próprio sangue, sendo perseguido como um animal comum. Porque, em suma, ele virou isso: um objeto.

“Oito mulheres e um segredo” coloca mulheres para viver uma premissa já explorada por personagens masculinos. Mas não faz a menor diferença que sejam mulheres ali. É mais do mesmo – em que pese divertido. Já “Vingança” é como um “Rambo: First Blood” para mulheres. De verdade, e sem nenhuma pretensão de ser. Com as definições de “cauterização” devidamente atualizadas.