Quem alugou a casa do Odilon pra ele foi seu Zé Frutuoso. Disse que ele chegou na Vemaguete, buzinou e de dentro do carro pergunto com um sotaque esquisito: – “Zé Frutuoso? O corretor? e o velhinho de dentro do alpendre respondeu: – “Sim. Apeia”, De dentro do carro mesmo o homem já disse que queria alugar uma casa boa, na área nobre, entre a Igreja Matriz e a Praça Joaquim Lúcio. Pediu o número do telefone e fechou a cara quando o Frutuoso falou que não tinha. Era quinta feira e ficou de voltar na segunda. Acelerou e nem desejou bom dia.

Frutuoso tinha 60 anos, mas aquela vida dura de corretor dava a ele fisionomia de bem mais. Magro, cabeça branca, bigodinho de pouco pelo que nunca foi raspado. Naquela época estava sempre de camisa de tergal branca (amarelada pelo sabão de bola) e calça azul escura de trecoline. Comprou duas peças na queima de estoque da Loja Brasil, da J-1 e dona Nicácia fez 12 camisas e 10 calças. Era resto de estoque comprado para o início do ano, quando as mães compravam estas duas cores e marcas do tecido para fazer o uniforme dos filhos, matriculados nos grupos escolares – em todos eles o uniforme era igual, o que identificava a escola, era o distintivo que servia de bolso na camisa. Quem ia sem uniforme não entrava. Quando já havia acabado o período de fazer o uniforme, a loja fazia a queima vendendo o que sobrou das peças baratinho. A mulher era costureira e ele não importava com vestir a mesma cor de roupa todo dia, andava sempre de camisa branca e calça azul. O sujeito da Vemaguete acelerou e ele já cuidou de pegar o chapéu, subir na Gorik e pedalar para as proximidades da Igreja Matriz e Praça Joaquim Lúcio. Sol quente, camisa molhada nas costas e a calça nos fundos, enfim achou a casa. Caixotada, com alpendre de cerâmica e o resto no taco de peroba rosa. Estucada com forro paulista no verniz. Pintada de verde e rosa por fora e azul claro por dentro. Muro chapiscado de um metro e grade de ferro quadrado com ponta fina, por cima. A parte de alvenaria era azul bem escuro, a grade preta. Quatro quartos, sala, copa, cozinha e área. Quintal com pedra de Pirenópolis nos fundos. A porta da sala era de madeira almofadada, com uma portinhola no meio para abrir pra ver quem batia palma lá fora. Era vermelha quase roxa e as outras portas lá de dentro também tinham está cor. O alpendre ocupava toda frente da casa. Tinha muretas que serviam de bancos e uma entrada no rumo da porta da casa. Havia uma passarela de cimento do portão para o alpendre, de um lado e do outro canteiro com grama, roseiras e um pé de dama da noite. Tinha sido reformada, mas a reforma foi uma reconstrução. Era do Odilon do Material de Construção. No portão uma placa num papelão dizia: “Aluga-se. Pagamento adiantado, fiador no contrato. Valor 3.500 cruzeiros mensais, sem negociação pra diminuir o valor”. Seu Zé Frutuoso achou caro, mas pra quem andava de Vemaguete novinha, o valor não deveria ser problema.

Na segunda feira, lá pelas dez da manhã o homem buzina na porta do Frutuoso: “Achou a casa?” – perguntou lá de dentro do carro mesmo. O corretor disse que sim e foi convidado a entrar no carro para mostrar onde era. Só então viu que o sujeito de cabelo loiro, já embranquecido pelos mais de 50 anos no lombo, era alto, forte, vestia roupa de gasimira e calçava Passo-Doppler. Camisa marrom clara e calça marrom escura, para combinar com a cor dos sapatos, que davam pra pentear o cabelo de tão lustrado. Seguiram pela 504, pegaram a Ipameri, viraram a direita na Rio Grande do Sul e saíram na Geraldo Nei, onde ficava a casa. Quase na esquina da Praça da Matriz e frontal a lateral do Cine Ritz. O homem leu a placa e mandou o Zé Frutuoso procurar o dono e fazer a proposta de aluguel por seis meses e para evitar o avalista, pagaria tudo adiantado. A tarde a casa já estava alugada, os móveis chegaram num caminhão da J. Carneiro Eletromóveis. Sofá, cama, guarda roupa, fogão a gás, prateleira e até geladeira frigider e televisão Phillips. Ele chegou na Vemaguete e uma morena baixinha, de pernas grossas, lábios carnudos, cabelos pretos cumpridos, cintura fina, de uns 24 anos, veio numa DKV de paralamas e portas marrom clara e teto branco, ouvindo Cely Campelo no rádio do carro. Foi a primeira vez que o corretor viu uma mulher dirigindo um automóvel. Achou esquisito. Também achou esquisito aquilo – com aquela cor e beição ela não seria filha dele. O melhor era se mandar…..se mandou.

Quando foi receber a comissão, Zé Frutuoso perguntou o nome dele: “Dr Werner. Quanto te devo?” A resposta foi mais grossa do que curta. Pagou os 150 contos e o Zé Frutuoso subiu na Gorik e se mandou de novo. Ao chegar em casa a galinha cantou como galo. Sinal de mau pressagio. Fez o sinal da cruz três vezes, como ensinou o Padre Pelágio.

Junho acabou, meninada entrou de férias, veio julho com frio de lascar e chegou agosto. Seu Zé Frutuoso foi lá no Colégio Rodrigues Alves, ver se o professor Tobias não queria comprar a casa da dona Suzana. Seu Vanderlei morreu e ela queria vender a casa, para dividir o dinheiro com a Dorinha e a Magda. Enquanto esperava o diretor, a moça bonita que dirigia carro entrou carregando uma caixa de giz e um apagador, na sala dos professores: “Hoje são só duas aulas, já vou indo. Até amanhã” – disse pra dona Ana e saiu, sem nem ver o Frutuoso. Antes do Professor Tobias chegar, ele já sabia que ela era a Ordália, nova professora de inglês, que tinha vindo do Rio de Janeiro. O Professor Tobias se interessou pelo negócio, comprou a casa e lá montou seu comitê para campanha de deputado pelo PSD. Na saída do Rodrigues Alves, Frutuoso viu o Sergiomar, na porta de casa, bem em frente da escola. Daquele tamanhão e mais forte. Era fisioculturista da Academia do Tarzã. Todo dia ia levantar peso lá na galeria da arquibancada do campo do Atlético, onde a Academia funcionava. Era bom de conversa e rastador de mala. Gostava de falar das muitas namoradas que tomava dos namorados e quem se metesse a besta, levava uns tabefes. Mas poucos se atreviam, ele era grande e forte. Zé Frutuoso gostava de conversar com o Sergiomar. Bateu um papo de mais de meia hora, falando da contratação do goleiro Campeão, pelo Atlético: “O Baltazar de Castro falou na Rádio Clube que ele é bom mesmo” – contou o Sergiomar. Já era quase onze horas, a barriga roncou e o Zé Frutuoso subiu na Gorik e foi pra casa comer o almoço da dona Nicácia. Quando chegou em casa a galinha cantou como galo outra vez. Chegou a arrepiar ao fazer os três sinais da Cruz.

Não demorou muito e o Sirico contou para o Frutuoso que o branquelão era o marido da morena e que o Ricardo Pardal tinha falado que ele era nazista fugindo da justiça: – “Pode parar Sirico, não quero saber deste fuxicou de tirar o sono da gente”. E foi embora sem pagar a dose de cachaça.

O Colégio Rodrigues Alves ficava no cruzamento da Av Perimetral com a rua Pouso Alto. Muitas salas em pouco espaço. Era escola boa, mas pra filho de rico, porque a mensalidade era alta. Pobre só os bolsistas do professor Tobias que era um homem muito bom e melhor professor de português do que o Daniel Antônio. Na porta tinha o gradil de trancar as bicicletas. Enfiava ela no box aramado e fechava o cadeado com a corrente prendendo a roda traseira nos dois ferros do lado, de cada box. Os carros tinham de estacionar mais embaixo, depois da esquina da Perimetral. Um dia a Ordália saiu e quando chegou na esquina de baixo, na rua do comércio, o pneu traseiro estava murcho. Mal desceu do carro e o Sergiomar já estava lá se oferecendo para trocar o pneu. Ordália ficou igual Ave Maria, cheia de Graça diante daquele homem grandão e forte. O Bráulio disse que o Zé Carlos Capetinha viu o Sergiomar colocar uma pequena tábua com um prego pra cima debaixo do pneu do DKV da moça, mas o Zé Capetinha era danado pra arrumar história. O fato é que do pneu trocado para o início do caso entre os dois foi um tempinho só. Quando passou de bicicleta e viu os dois conversando na porta do Rodrigues Alves, Zé Frutuoso contou pro Sergiomar o que o Sirico tinha contado. Sergiomar disse que não tinha nada com a mulher, mas se o nazista se metesse com ele, ia voltar a pé pra Alemanha.

Quando venceu os seis meses do aluguel da casa do Odilon do Material de Construção, o tal Werner já tinha alugado um apartamento lá na Paranaíba com a Goiás. Prédio alto, mais de 20 andares: Edifício Liberdade, que está lá até hoje. O apartamento era no 16° andar. O Alemão quis o apartamento porque ia com frequência para São Paulo, sabe Deus fazer o que. Era mais seguro para a esposa. Na quinta feira de novembro chamou o chover de praça pelo telefone e foi para o aeroporto. O Sergiomar já estava lá embaixo esperando a saída. Pra sorte dele, o alemão saiu antes do toró de água cair do céu como um dilúvio. Ainda molhou um pouco, ao atravessar a Goiás. Enquanto entrava no prédio pra pegar o elevador, lá na casa do Zé Frutuoso, a galinha cantou como galo mais uma vez e outra vez o corretor fez os três sinais da Cruz. Sergiomar pegou o elevador e subiu. Foi recebido com chamego pela Ordália. Nenhum jamais atentou que o apartamento só tinha uma porta de entrada. O porteiro que ganhava um dinheiro do Sergiomar avisou que o alemão estava subindo e eles já ouviram o barulho do elevador abrindo a porta, depois do apitinho. O jeito foi o Sergiomar entrar dentro do guarda roupa. Teve de se embodocar todo para caber la dentro. O móvel era baixo e tinha roupas na parte de baixo. Deitar não tinha como, sentar muito menos. Passou a chave pro lado de dentro e ficou lá. Nem fungar fungava. Escuro, sem ar e arcado lá dentro. Sorte é que a Ordália tirou o pijama, roupão e toalha antes de trancar a porta. O alemão não desconfiou de nada. Contou que a chuva forte cancelou o vôo é que só iria no outro dia a tarde. O Sergiomar travou lá exprimido dentro do guarda roupa. Quase morreu de vontade de mijar. Enfim o homem saiu. O Sergiomar, abriu a porta quando a Ordália bateu e falou que podia. Do jeito que estava lá dentro ficou do lado de fora. Não dava pra esticar aqueles músculos todo. Estava andando igual um gorila, todo embodocado. O pescoço tombado pra direita, com um torcicolo que não deixava ele levantar o braço, para vestir a camiseta. O jeito foi enfiar a camiseta no braço passar pelo pescoço inchado, esticar para o outro lado até levar o buraco da manga para a mão entrar.

O pouco movimento possível deixou o bruta monte com os olhos cheio d’água. Sentar que jeito? Quadril duro travado levando a bunda pra trás. Levantou uma perna, a Ordália enfiou a calça, levantou a outra e ela tornou enfiar. Ela mesma subiu a calça dele até na cintura, abotoou a braguilha, calçou a conga e ele saiu andando como um chimpanzé. Pegou um táxi e foi pra casa, deixando a lambreta lá no estacionamento do Hospital Santa Luiza, que ficava em frente ao prédio, onde ele sempre deixava, nas noites das viagens do Dr Werner. Foi o seu Miltão, massagista do Atlético que o esticou de novo, a pedido do Tarzã. Era só grito quando o preto puxava um braço, ou uma perna. O torcicolo foi o mais demorado. Sergiomar andou olhando pro lado direito, com um papo do lado esquerdo do pescoço por uns 15 dias, bebendo Melhoral para suportar a dor.

Quando já estava andando normal e pilotando a lambreta outra vez, tinha chegado às férias de novembro e Ordália foi embora com o Alemão. O povo falou que foi pra São Paulo, mas ninguém soube ao certo. Certo mesmo é que quando ela o chamou lá do muro pra se despedir, ele ficou caladinho dentro de casa fingindo nada ouvir. A voz da moça já lhe provocava dor pelo corpo todo. Pelo menos o Alemão foi embora sem saber de nada. Depois disso nunca mais o Sergiomar se meteu com mulher casada e parou de tomar as namoradas dos solteiros.