…Ela agradeceu e saiu. Enquanto esperava o ônibus de volta, sacou da mochila o presente do velho e abriu na contracapa que identificava o livro: Drácula, de Bram Stoker. Sua primeira reação foi desdém, não gostava daquele tipo de história, mas, apaixonada que era pela leitura, com certeza se abriria para aquela nova experiência.

No caminho para casa foi pensando o quão estranho aquilo havia sido. Primeiro um senhor que aparentava tanta idade ter vitalidade para montar e tocar toda aquela loja sozinho. Segundo todo o tratamento especial, pouquíssimo comum nos estabelecimentos comerciais e o mais intrigante: porque, em meio aquele tanto de livros, escolher aquele? Tudo isso a inclinou a começar a leitura justamente pelo brinde.

Não foram necessárias nem 10 páginas para que ela tivesse totalmente absorvida pelo livro. Simplesmente não conseguia largar a história. Um magnetismo inexplicavelmente forte a mantinha presa, mesmo quando não estava lendo-o. Assim, em uma semana acabou lendo e relendo a obra, debaixo para cima e de cima para baixo. Com certeza se tornou seu favorito e não sabia o explicar o porquê.

Anos se passaram desde que havia lido aquele despretensioso brinde, mas a sua ligação com ele permaneceu intacta. Vez ou outro ainda o pegava, relia alguns trechos e sempre buscava uma ou outra frase ou diálogo que havia passado despercebido. Interpretava e reinterpretava a história sob vários olhares e até com a cabeça dos personagens. Assim o manteve sempre vivo em sua caminhada literária. Sempre até que decidiu não mais fazer aquilo. Guardo-o e fim.

Meses depois de sua decisão de evitar o livro, foi anunciado que o cinema hollywoodiano lançaria uma adaptação milionária da história, uma megaprodução. Como um gato que caça um rato, a história voltava a persegui-la. Durante o tempo que correu entre o anúncio do filme e seu lançamento, ela martelou dia após dia em sua cabeça a dúvida se cairia na tentação de vê-lo ou não. No fim, decidiu que ia.

Sim, ela iria, mas não de qualquer jeito. Ia esperar todo o alvoroço da estreia e das primeiras semanas, queria assistir ao filme tranquila, sem aquela agitação peculiar da sala de cinema em filmes de grande público. Esperou até os últimos dias dele em cartaz e então comprou seu ingresso para uma terça-feira, às 22h20. Tinha o objetivo de ser a única na sala e fez de tudo para tentar isso, mesmo sabendo que era praticamente impossível.

Realmente não conseguiu ser. Além dela, haviam mais seis ou sete pessoas. Um casal no canto esquerdo, mais alguns espalhados nas fileiras de cima e ela no centro. A sala em formato retangular dava uma sensação de profundidade maior do que o ambiente realmente tinha e isso acabou por acentuar sua solidão. Apesar de não estar sozinha, aprovou as condições em que assistiria ao filme.

Em poucos minutos as luzes se apagaram completamente, a tela projetou as primeiras imagens e ela se afundou na poltrona. Os olhos vidrados não desgrudavam da tela, sentia uma sensação estranha e não conseguia interpretar o que era. Se entregou completamente, absorta, tragando tudo que era exibido pelo telão. Quando apareceu a imagem do Conde Drácula seu coração disparou no peito. Teve a sensação que conhecia aqueles traços sombrios.

De imediato veio à cabeça o velho que lhe entregou o livro, provavelmente já morto àquela altura da vida. Era muito parecido, senão igual. Tinha a mesma aparência doentia, frágil mas ao mesmo tempo intimidadora, a calvície gritante e aqueles olhos amarelos. A palpitação que lhe consumia por dentro era tão grande que se o casal, os mais próximos à ela, desse um tempo nos amassos, poderia escutá-la.

Tinha a impressão que os olhos do velho o fitavam durante o tempo todo. A cada cena, a cada ação do personagem, ela se sentia engolida. Até que realmente foi. Enquanto fazia mais uma vítima no filme, Drácula mirou-a diretamente, sem cerimônia nenhuma. Sob o ombro do ser que agonizava sob sua presa, prendeu-se à ela e sorriu maliciosamente com os cantos da boca.

Não restava dúvida do que acontecia. Ela ficou paralisada, sem qualquer reação. Via os olhos amarelos fixos nos seus, não conseguia desviar deles. Se aproximavam cada vez mais, trazendo junto um terror ininteligível. Exalava um odor forte, que lembrava qualquer coisa em estado avançado de putrefação.

Ele se aproximou e ela sentiu um toque nas mãos. Gelado como se tivesse cumprimentando um defunto, mas de rara leveza e cavalheirismo. Não conseguia parar de tremer. Os pelos de seu corpo todos ouriçados denunciavam seu estado de êxtase. Os toques foram subindo pelos braços até alcançar o pescoço. Ela não conseguia mais respirar, o coração ia explodir. Em um último relance, conseguiu ver novamente aquele sorriso apoderar de sua jugular. Dois pontos afiados a tocaram e, em fração de segundo, foram cravados em seu pescoço, rompendo com uma violência animalesca a sua pele.

Seus olhos se estatelaram na face pálida, refletindo o êxtase mortal. Seu corpo encharcou em sangue e, completamente entregue à gravidade, padeceu na poltrona. A projeção da tela foi se apagando e as luzes da sala voltaram a se acender.