Pôster do elogiado filme de Fabiana Assis.

 

Pessoalmente, considero como duas as situações de intervenção estatal mais desastrosas, na História de Goiás: o caso “Césio 137” e o caso “Parque Oeste”. Em ambos os casos, a omissão estatal levou a situações absurdas, desaguando em crises geridas de modo completamente amadorístico. E o segundo acontecimento é o tema central – e título – do filme de Fabiana Assis, que teve excelente receptividade de público e crítica, com destaque para a sua exibição na mais recente Mostra de Cinema de Tiradentes, em Minas Gerais. O filme foi um dos únicos aplaudidos de pé, e levou o prêmio de melhor filme exibido na Mostra “Olhos Livres”.

O tema é espinhoso. E assistir o filme sendo goiano, tendo acompanhado os fatos de perto pela mídia, pelos bastidores e por filmes subsequentes (como “Sonho Real – uma história de luta por moradia”, produzido em 2010 pelo Coletivo de Mídia Independente de Goiânia) traz uma vontade enorme de imiscuir na discussão. Mas vamos com parcimônia.

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A diretora Fabiana Assis foi aplaudida de pé na 22a Mostra de Cinema de Tiradentes, pelo filme “Parque Oeste”.

Fabiana é corajosa ao ter assumido a empreitada de ressuscitar um tema já meio fora dos holofotes, mas de extrema relevância ainda hoje. Em entrevistas, ela conta que a intenção era a produção de um documentário sobre outra temática, mas que por motivos da vida esbarrou com o setor Real Conquista e com Eronilde Nascimento – ativista, uma das lideranças pós-Parque Oeste e esposa de um dos mortos nas operações de desocupação. Mas vamos contextualizar isso aí primeiro:

O filme conta o episódio envolvendo a desocupação de uma área na periferia de Goiânia, localizada no Setor Parque Oeste Industrial, em 2005, e que resultou em 2 mortes, 12 feridos e mais de 800 detidos. Acompanhamos todo o drama, principalmente pelos olhos de Eronildes e as imagens gravadas por Brad Will – ambos moradores da ocupação e testemunhas oculares.

A sessão começa com slides dos belos mas limitados projetos de fundação da cidade de Goiânia. Lá pelos idos de 1933, quando foi criado, o projeto arquitetônico não tinha a menor ideia do que a metrópole viraria. Já na década de 70, nos conta o filme, mais de 300 mil pessoas viviam por aqui. Hoje, a população ultrapassa isso em um milhão.

Com esse didatismo, a introdução quer concluir que a invasão do terreno no Parque Oeste Industrial (que para fugir da pecha, os mais sensíveis hoje insistem em chamar de ‘Novo Eldorado’ ou ‘Eldorado Expandido’) foi derivação direta da falta de planejamento urbano. Detalhe para o fato de que o Setor Parque Oeste é um bairro formalizado pela prefeitura de Goiânia desde 1957.

A partir daí, a primeira metade do filme é uma escalada para as operações “Inquietação” e “Triunfo”, nome dado pela Polícia Militar para a mobilização de 1 mil e oitocentos policiais visando o cumprimento de um mandado judicial de despejo das famílias.

As cenas escolhidas a dedo por Fabiana são inquietantes. São olhos e ouvidos de dentro das cercas improvisadas, registradas majoritariamente pelo morador Brad Will (já falecido), mostrando os requintes de crueldade de um tipo de conduta policial padrão, prevista em forças do mundo todo: atordoar e vencer o inimigo pelo cansaço, evitando disparar tiros e usar de força letal. Sendo curto e grosso, tortura psicológica. Tática de guerra, usada na cidade contra civis. De início, cortaram o fornecimento de energia elétrica. Depois, com os giroflex ligados, passaram a detonar fogos de artifício do período de meia noite às 6h da manhã, ininterruptamente.

Após quase 10 dias de tortura psicológica, em 16 de fevereiro de 2005 a polícia decide invadir. Do lado de cá, homens e mulheres de todas as idades – inclusive idosos e crianças – tentavam esboçar reação face ao batalhão de preto que se posicionava do outro lado da Rua do Tear e da GO 060.

O grupo tático avança escondido por escudos. Gás lacrimogêneo se espalha por todos os lados. Posteriormente, balas de borracha. Por fim, chumbo. Dentro das casas, pessoas desesperadas deitadas no chão, tentando conter o choro de seus filhos de 2, 3, 4 meses de vida. Cena de guerra. Cena de filme de terror.

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Assentamento para onde foram removidos os ocupantes do Setor Parque Oeste Industrial, após a desocupação.

Até aqui, estou contando o que o filme mostra, em cenas, sentimentos e intenções. São imagens chocantes. Mas que, analisando friamente, de modo artístico, também escancaram o maior defeito da obra: sua parcialidade.

Não seria um defeito por si só. Afinal, escolhas conscientes de roteiro e direção no sentido de defender um ponto de vista não podem ser necessariamente considerados como defeitos. Isso é um traço do documentário desde a construção fictícia de Nanook de Robert Flaherty. A câmera – extensão do realizador – sempre será parcial, pelo simples fato de ser seletiva.

O problema é quando a proposta apresentada se traveste – e é o que parece acontecer aqui. Vende-se uma coisa, entrega-se outra. Eronilde é, declaradamente, a alma do filme. Dona de um discurso firme ao mesmo tempo que emocionado, ela é o fio condutor da narrativa. Em decorrência disso, o espectador precisa estar consciente de que verá o mundo pelos olhos de Eronilde e Fabiana, e que aquilo ali é só uma parte da história – ainda que ela se apresente como a história inteira. Para quem morava em Goiânia na época dos fatos, estudou ou de alguma outra forma conhece um pouco mais do contexto, acaba ficando difícil comprar o filme na sua integralidade – mormente quanto à intenção.

Cabe aqui aquela velha distinção entre “Real” e “Realidade”. O filme estabelece o REAL, dentro do aparato psíquico e dos recursos cognitivos de Eronilde. Mas, ao fazer isso, foge da REALIDADE dos fatos, como um contexto factual complexo. E o problema está em vender-se como um retrato dessa realidade, e não como autorretrato (no rumo do que diz a estudiosa Raquel Schefer, por exemplo) de Fabiana e Eronilde.

Veja bem que não se discute aqui a veracidade do discurso, mas o quanto ele se passa por “todo” quando, na verdade, é só um pedaço. Porque a diretora apresenta sua criação como um filme sobre o Parque Oeste, sobre resistência e sobre violência policial – é o que informa o pôster, por exemplo – mas ignora questões simples como “o outro lado da moeda”. Não há qualquer informação sobre o lado burocrático ou administrativo da questão, ou sequer clareza de datas. Não há no filme qualquer outro depoimento que não o de Eronilde. Não há intenção de reconstituir os fatos em sua integralidade. Em chegar à verdade real (“Realidade”), por assim dizer. O objetivo é, sempre, chegar à verdade de Eronilde (“Real”). O que destoa do cartaz, da sinopse, do título ou da proposta como um todo. Seria como comprar gato por lebre.

Histórias relativas às particularidades do tramite administrativo até a desocupação, a participação emocional de alguns policiais envolvidos no conflito, o comportamento da imprensa ou o impacto negativo da liderança de Américo Rodrigues de Novaes para a luta (ele foi um dos submetidos a juri popular por ter participado da tentativa de assassinato de um dos policiais, no dia anterior ao retratado no filme) foram solenemente ignoradas. Algo admissível dentro da realidade de Eronilde, mas imprescindíveis num filme que pretende fazer um retrato fiel de um momento vergonhoso na História de Goiás.

E porque isso é importante? Porque pelo olhar de Eronilde, percebe-se a sede por explicações, o inconformismo, a esperança por dias melhores: a resistência. Natural que seja assim. Mas quando o filme se compromete excessivamente com o ponto de vista de seu objeto, a credibilidade sempre sai arranhada. Há sempre o risco de um filme-propaganda, um filme militante. Pecha evitada por documentaristas como diabo foge da cruz. Filmes como “Jardim das Aflições”, de Josias Teófilo, ou as produções do americano Michael Moore, por exemplo, são frequentemente criticadas por esse motivo. 

 

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Eronilde Nascimento: razão e alma do filme. (Foto: internet/divulgação)

Também quanto à gestão da carga dramática na tela, Fabiana acaba pecando, porque adota a linha cronológica dos fatos para a montagem. Conta o antes, o durante e o pós invasão. De modo que, depois de detonadas as granadas de gás lacrimogêneo, pouco sobra de interesse dramático para o espectador, e o filme cai vertiginosamente em interesse. Os moradores despejados são conduzidos de improviso a um ginásio, e por ali ficam por mais de 3 meses, aguardando o pronunciamento oficial do Estado. Depois, são instalados de modo absurdamente precário em uma fazenda improvisada, ficando desse modo por mais de 3 anos, até que a área fosse pouco a pouco urbanizada, com serviços básicos como energia e iluminação. Nesse processo, a luta constante de Eronilde é fundamental.

Mas após isso, salvo um trecho ou outro, o filme se converte em registros tediosos e repetitivos da rotina de Eronilde, que nada guardam de relação com a  proposta inicial. Sim, também tem registros da constante busca dela por mobilização no bairro! E para questões básicas, como a construção de uma escola estadual. Mas experimentar um vestido ou cozinhar também acabam ganhando mais atenção do que mereciam, evidenciando que a obra sempre esteve muito mais ligada a Eronilde e sua visão de mundo do que aos incidentes na desocupação do antigo acampamento “Sonho Real”. O que, convenhamos, deixa um gostinho amargo de “desperdício de tema e material”. A conclusão é que “Parque Oeste” está longe de ser um documentário definitivo sobre a questão.

O fato é que – ainda que questionáveis – as escolhas feitas por Fabiana Assis dão coerência ao projeto, do início ao fim. O intento dela está preservado, é inegável. Até poderia ter assumido um objetivo muito mais profundo e comprometido com o interesse público (como, por exemplo, Régis Faria fez, ainda que de modo espartano, em “Vida Bandida”, de 1996, sobre o assaltante Leonardo Pareja). Mas escolhas são escolhas, e mesmo que escancarada a parcialidade do documentário, ao final da projeção a conclusão é cristalina, inevitável, inquestionável: o Estado brasileiro foi e continua sendo extremamente incompetente na gestão das demandas coletivas. E nesse contexto, o Estado de Goiás consegue se sobressair, protagonizando episódios absurdamente nefastos. Mais do que necessários, personagens como Eronilde se mostram inevitáveis. Consequências de anos e anos de descaso.

E enquanto forem necessários, que nunca deixem de existir.

*Texto em parceria com o site Pipoca com Pequi