Norberto Salomão
Norberto Salomão
Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Professor de História, Analista de Geopolítica e Política Internacional, Mestre em Ciências da Religião e Especialista em Mídia e Educação.

Pelé: A saga do herói brasileiro e cidadão do mundo

Segundo as concepções mitológicas, os heróis ou semideuses eram fruto da relação entre um humano e uma divindade. Esses indivíduos não eram imortais, mas tinham habilidades sobre-humanas, como força ou inteligência.

Joseph Campbel, estudioso de mitologia e religião comparada, autor da obra “O Herói de Mil Faces”, reflete sobre a “jornada do herói arquetípico”, que pode ser encontrada em variadas culturas. Nessa obra Campbell estabelece os passos ou etapas para que um homem comum alce a condição de herói. Ele estabelece 12 etapas que, na verdade, são uma metáfora da viagem interior na busca pela superação de nossos medos e na conquista de metas que sejam relevantes não só para o “herói”, mas para todos aqueles que ele poderá beneficiar com seus feitos e aprendizados.

Já na obra “O Poder do Mito”, Campbel também se refere a trajetória do herói e destaca que todos nós buscamos mais do que um mero sentido para a vida. Segundo ele, procuramos vivenciar a experiência de estarmos vivos, não só no aspecto físico, mas também e principalmente na descoberta de nossa essência interior. É a partir dessa descoberta interior que o homem comum ganha força e começa a jornada do herói.

Bem, convenhamos que a maioria não consegue realizar a plenitude dessa introspecção, em virtude de variadas circunstâncias. Mas, há aqueles que furam essa bolha e, não só se destacam, se tornam modelos de nossa admiração e reflexo de nossos sonhos e frustrações. Grosso modo, podemos afirmar que reside aí a diferença entre o homem comum e aquele que é elevado à condição de herói.

Recorrendo ainda à obra “O Poder do Mito”, destaco a seguinte citação de Campbell sobre a saga do herói: “Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. Temos apenas que seguir a trilha do herói (…)”.

Quando pensamos em nossos ídolos, em pessoas que consideramos “fora da curva”, é interessante diferenciarmos aqueles que exercem variadas atividades, dos que exercem a atividade esportiva. A saga de um atleta, com as lutas que trava para superar desempenhos, recordes, números de títulos, lesões físicas e emocionais e as armadilhas que podem levá-lo ao fracasso ou pior, ao ostracismo, fazem com que ele transcenda a condição de ícone para se tornar um legítimo herói. É nessa categoria que Pelé, o atleta futebolista, se enquadra.

Os ídolos, tanto os do esporte quanto os das artes e de outras atividades de maior exposição pública do indivíduo e suas realizações, naturalmente se constituem em celebridades. Mas, observe que somente os ídolos do esporte, pela natureza dos desafios sobre-humanos que têm que superar em suas atividades, podem galgar uma posição na galeria dos heróis. Assim, ancorados na abordagem teórica de Joseph Campbell, podemos concluir que enquanto as celebridades são seres ensimesmados na própria fama, os heróis transcendem essa condição e se constituem em modelos de comportamento e de trajetória de vida que inspiram, de forma virtuosa, a coletividade.

A história do jovem Edson Arantes do Nascimento apresentou circunstâncias que o colocaram, de forma bastante precoce, na “jornada do herói”, talvez desde os 9 anos de idade, quando diante do fracasso do selecionado brasileiro no “maracanaço”, em 1950, prometeu ao seu pai que venceria para ele uma copa do mundo. Pois é, o proto-herói é assim, traça metas que parecem inacreditáveis e, surpreendentemente, ele as conquista.

O Edson sempre foi alvo de crítica pela maneira com que se referia ao Pelé na terceira pessoa. Acredito que não se tratava da busca de separar os dois personagens, que naturalmente são indissociáveis, mas sim de diferenciá-los, pois parece fazer total sentido separar o homem comum do herói.

Poderia a partir daqui mencionar a espantosa performance desse atleta de feitos inacreditáveis, mas interessa-me ir além ou para além desses aspectos, ou seja, o que o Edson fez com o Pelé dentro e além da prática do futebol.

O herói Pelé se consolidou muito além dos seus feitos futebolísticos. Tornou-se a referência de identificação do Brasil e do povo brasileiro pelo mundo. Não são poucos os brasileiros que afirmam que em situações embaraçosas em terras estrangeiras, a evocação do nome Pelé era uma espécie de salvo conduto, tamanha a dimensão internacional que o “rei’ alcançou.

Um caso emblemático foi o do amistoso, em 1969, na Nigéria. O país estava em meio a uma guerra civil que entre outras questões implicava o movimento separatista da região de Biafra. A presença do time espetacular do Santos e do ídolo Pelé, garantiram a decretação de um feriado e de uma trégua. O próprio Pelé afirmou que um dos seus grandes orgulhos foi esse fato. Muitos questionam se os fatos se passaram realmente dessa maneira, mas é justamente assim que se constituem as narrativas dos heróis, mesclando mito e realidade.

Antes de integrar o elenco do Cosmos, nos EUA, participou em 1975 de um amistoso em Beirute, no Líbano. O destaque é que o país estava à beira da eclosão de uma guerra civil, mas o temor de que a partida não acontecesse obrigou as forças inimigas a selarem um compromisso de não-agressão.

As ruas ficaram repleta de pessoas que queriam ver “o maior jogador do mundo” e cristãos, judeus e muçulmanos da região deixaram de lado, momentaneamente, as suas rivalidades. Para o delírio de um estádio abarrotado, Pelé não só entrou em campo, como deixou sua marca e fez dois gols.

O fato é que Pelé se tornou uma unanimidade internacional. Manteve contato com as personalidades mais importantes do mundo, de Papas a reis e presidentes das grandes potências.

Dessa forma, é incontestável que o seu legado foi além de suas façanhas no futebol. Pelé foi convidado pela ONU para assumir o posto de embaixador da Boa Vontade da Conferência Rio 92 sobre meio ambiente, também atuou com a organização para apoiar os direitos das crianças em várias partes do mundo. Em 2007 integrou-se à Campanha do Cartão Vermelho contra o trabalho infantil, promovida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). 

Desde 2022 apoiava a divulgação das ações do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos (WFP). Dessa maneira, não é exagero afirmar que Pelé foi o grande embaixador do Brasil e emprestou sua imagem e influência para promover o esporte como um instrumento para a paz e a harmonia entre os povos.

Infelizmente os heróis também morrem e quando se vão deixam uma saudade e um vazio que só pode ser preenchido pela consistência de seu legado. O artista Andy Warhol ao avaliar, em 1968, os efeitos da indústria cultural e seu poder midiático, afirmou: ”no futuro, todo mundo será famoso por 15 minutos”. Dez anos depois, em 1978, Warhol conheceu Pelé e ao tomar conhecimento do que ele representava não se conteve em expressar as seguintes palavras: “Você é a única celebridade que, em vez de durar 15 minutos, durará 15 séculos”. Que assim seja!

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