Arthur Barcelos
Arthur Barcelos
Apaixonado por futebol e geopolítica, é o especialista de futebol internacional da Sagres e neste espaço tem o objetivo de agregar os dois temas com curiosidades e histórias do mundo da bola.

A Copa dos estrangeiros

Em uma sociedade cada vez mais globalizada e com menos fronteiras e barreiras, embora alguns movimentos tentem coibir isso, o conceito de nacionalidade é, pouco a pouco, ressignificado. O futebol possibilita entender esse fenômeno de uma forma mais prática, e a Copa do Mundo é o enésimo exemplo disso.

Pela primeira vez realizado no Oriente Médio, o Mundial de 2022 da Fifa acontece em um país cuja população é de apenas 12% de nativos. Dos cerca de 2,8 milhões de habitantes do Catar, mais de 2,3 milhões não nasceram no emirado, e a península é dominada por estrangeiros, dependente da mão de obra imigrante.

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A seleção catari, comandada por um espanhol e com diversos imigrantes de origem africana e árabe, é só mais um exemplo de vários que temos neste torneio que evidenciam as questões da dupla nacionalidade, oito meses depois de uma Copa Africana de Nações que também levantou esse debate.

Dos 832 jogadores convocados para a Copa de 2022, 136 não nasceram no país que defendem no Catar, de acordo com levantamento do jornalista americano Jaime F. Macias. Dentre as 32 seleções nacionais envolvidas na competição, apenas quatro não contam com jogadores naturalizados: Arábia Saudita, Argentina, Brasil e Coreia do Sul.

Argentina e Brasil, vale ressaltar, dois países cuja formação passa, necessariamente, pela participação de imigrantes europeus, africanos e asiáticos – um debate ainda mais extenso, que não é o foco da coluna nesta semana. Em destaque, as cinco representantes da África no Catar contam com atletas nascidos em outros lugares.

Com 14 atletas, Marrocos sobressai. Por motivos culturais ou esportivos, o que não cabe discutir nesse momento, se tratam de jogadores que fizeram o caminho inverso de seus pais e avós, que deixaram o continente africano em busca de uma oportunidade na Metrópole – um caminho que ainda hoje vemos ser percorrido.

Companheiros de clube no inglês Chelsea, o marroquino Hakim Ziyech, nascido nos Países Baixos, disputa jogada com o croata Mateo Kovacic, nascido na Áustria (Foto: Twitter/Équipe du Maroc)

Diante desse contexto, a França desponta como o país que mais “serviu” atletas para o Mundial. São 36 ao todo, com destaque para três ex-colônias: Tunísia (10, Senegal (9) e Camarões (8). Já a Inglaterra tem 17 jogadores em outras seleções, dos quais nove em Gales e dois no Canadá, que também fazem parte do Reino Unido.

Em contraste, a seleção francesa tem apenas três atletas que não nasceram no país. Enquanto Steve Mandanda nasceu em Kinshasa, Zaire (atual República Democrática do Congo), Eduardo Camavinga nasceu em Cabinda, Angola, em um campo de refugiados, também descendente de congoleses. Ambos cresceram no norte da França.

Já Marcus Thuram, filho do lendário Lilian Thuram – jogador com mais presenças pela França, ex-Juventus e Barcelona, por sua vez nascido em Guadalupe, departamento ultramarino francês no Caribe -, nasceu em Parma, Itália, quando o seu pai jogava na equipe da Parmalat. Marcus foi criado em Paris.

Entretanto, dos 26 franceses convocados por Didier Deschamps, 15 são oriundos de pais ou avós estrangeiros. Dez destes foram criados nos subúrbios da capital Paris, inclusive Kylian Mbappé, principal jogador do atual selecionado campeão mundial, de origem camaronesa e argelina, que cresceu em Bondy.

De origem camaronesa e argelina, Kylian Mbappé é o rosto de uma França multicultural (Foto: Twitter/Kylian Mbappé)

Portugal não está alheio, e tem sete “estrangeiros”, dos quais cinco provenientes de ex-colônias: além dos brasileiros Pepe (alagoano), Matheus Nunes (carioca) e Otávio (paraíba), o angolano William Carvalho e o guineense Danilo Pereira, e também os filhos de imigrantes Diogo Costa (Suíça) e Raphaël Guerreiro (França).

Por sua vez, a Croácia tem sete fugitivos de guerra. Se tratam de filhos de croatas que deixaram o país pela própria sobrevivência. Três nasceram na Bósnia-Herzegovina, e dois na Alemanha e na Áustria, cada. A Itália, por exemplo, que não se classificou para o Mundial de 2022, tem três “representantes” no Catar.

Além do francês Thuram, também foram criados na ‘Terra da Bota’ o marroquino Walid Cheddira e o polonês Nicola Zalewski. Já o camaronês Jean-Charles Castelletto, que nasceu e foi criado na França, é filho de um italiano. Inclusive, 70 jogadores convocados para a Copa jogam no Campeonato Italiano.

Em um futebol globalizado, foi possível até mesmo ver a ‘lei do ex’ no Mundial. O responsável pelo feito foi Breel Embolo. Nascido em Yaoundé, Camarões, o atacante não comemorou o gol da vitória da Suíça – país onde cresceu e adquiriu a dupla nacionalidade -, marcado contra a nação onde o seu pai ainda hoje reside.

Outro exemplo da África é Iñaki Williams. Filho de ganeses, nasceu em uma Espanha bem diferente, no País Basco. Apesar da forte identidade local, o atacante escolheu representar a terra de seus pais, que cruzaram o Deserto do Saara a pé em busca de melhor qualidade de vida no continente europeu, e estreou justamente no Catar.

Por falar em futebol africano, apesar de repatriar descendentes de nativos, as seleções do continente decidiram apostar em treinadores nascidos no próprio país, feito inédito em uma Copa. Além do senegalês Aliou Cissé, também compõem o grupo o tunisiano Jalel Kadri, o ganês Otto Addo, o camaronês Rigobert Song e o marroquino Walid Regragui.

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