Na aldeia Tekoa Kalipety indígena, localizada a 70 quilômetros do centro da cidade de São Paulo, entre as recentes mudas de árvores nativas da Mata Atlântica que começam a florescer, alguns remanescentes antigos de eucalipto permanecem firmemente enraizados no solo. Por décadas, esta região, historicamente ocupada pelo povo guarani, serviu como fornecedora de matéria-prima para a indústria de papel e celulose, até que, em 2013, os indígenas retornaram ao seu território com o objetivo de revitalizar a Mata Atlântica.

“A gente está plantando perto das nascentes, estamos tentando recuperar a terra, que está muito degradada. Assim como a gente, muitos animais ficaram sem comida com a destruição da Mata Atlântica”, diz Jera Poty Mirim, primeira mulher a liderar seu povo. “Nós cuidamos da floresta”, adiciona.

Essa dedicação à terra é corroborada por evidências científicas. Um estudo recentemente publicado,em janeiro, conclui que em Terras Indígenas (TIs) devidamente demarcadas na Mata Atlântica, o desmatamento diminui e a área de floresta aumenta. A pesquisa, divulgada na PNAS Nexus (Proceedings of the National Academy of Sciences), analisou a cobertura florestal de 129 TIs de 1985 a 2019.

“Reunimos evidências robustas que mostram que a formalização dos direitos sobre a terra influencia o desmatamento e a restauração florestal. Quando os indígenas têm autonomia e direitos assegurados, o efeito sobre o meio ambiente é direto”, detalha Rayna Benzeev, primeira autora do estudo, à DW Brasil.

Estudo inédito

De acordo com os dados, a cobertura da Mata Atlântica aumentou em 0,77% ao ano nas TIs após a demarcação oficial, em comparação com os territórios indígenas onde o processo de posse ainda estava pendente na Justiça.

Este estudo é pioneiro ao examinar minuciosamente o papel das populações indígenas na preservação do bioma mais ameaçado do país. Apenas 12% da cobertura original dessa floresta tropical ainda permanece.

“A questão indígena não é só Amazônia. Neste estudo, estamos falando de povos do Sul, Sudeste e Nordeste, que vivem num bioma já tão degradado. Os povos indígenas dessas regiões lutam pelo reconhecimento do território, e a gente conseguiu demonstrar que eles são muito importantes, mesmo para a proteção ambiental”, comenta Marcelo Rauber, ligado ao Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos coautores do artigo.

Expansão da agricultura e pecuária

Para compreender o contexto por trás das imagens de satélite analisadas, os pesquisadores investigaram o histórico de alguns processos de demarcação. Em particular, notaram-se altas taxas de desmatamento em três territórios no sul da Bahia, onde o povo Pataxó aguarda a resolução dos litígios.

“Em especial na TI Barra Velha, queríamos entender porque havia tanta destruição da Mata Atlântica, e entendemos que isso aconteceu quando os indígenas não tinham qualquer direito sobre a terra”, comenta Rauber.

De modo geral, conforme observado pelo pesquisador, a expansão da agricultura e da pecuária por não indígenas tem motivado a destruição da vegetação em territórios indígenas. No sul da Bahia, os conflitos violentos com fazendeiros que ocupam áreas reconhecidas como tradicionais para os indígenas, mas ainda não demarcadas, têm se intensificado. Em janeiro, dois jovens pataxós foram mortos a tiros.

“Nossos resultados podem contribuir para aumentar a consciência internacional sobre a importância de direitos da terra para os indígenas. Também podem contribuir para os processos judiciais em andamento”, avalia Rayna Benzeev. A autora da pesquisa conduziu o estudo durante seu doutorado no departamento de estudos ambientais da Universidade de Boulder, no Colorado, e atualmente está afiliada à Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Números

Das 726 TIs existentes no Brasil, pouco mais da metade, 487, concluíram o processo e foram homologadas. As demais estão em diferentes estágios: 122 ainda estão na primeira fase; 44 territórios encontram-se na segunda fase; 74 estão na terceira etapa, sendo considerados como “declarados”, mas ainda não foram fisicamente demarcados por meio de um decreto presidencial.

A luta dos guarani da TI Tenondé Porã, onde está situada a aldeia Tekoa Kalipety, teve início em 2013, quando retomaram o território do qual foram expulsos na década de 1960.

Os anciãos guarani relatam que, naquela época, homens não indígenas chegaram à região declarando a intenção de tomar as terras, oferecendo aos povos originários a oportunidade de permanecer, desde que trabalhassem. “Era um trabalho escravo”, conta Jera Poty Mirim, 41 anos.

Regularização

Após a regularização da posse pelos guarani, as lideranças buscaram sementes tradicionais em aldeias mais antigas do Rio Grande do Sul. Atualmente, na TI, nove variedades de milho e mais de 30 tipos de batata-doce são cultivados para sustentar mais de 300 famílias que habitam o local.

“Temos muitas dificuldades na área social, na educação, mas estamos na nossa terra e queremos resgatar nossa cultura e nossa alimentação saudável”, diz Jera. A planta sagrada yvaro, utilizada para banhos e medicamentos, outrora escassa, está se espalhando novamente juntamente com a recuperação da Mata Atlântica.

“Nosso estudo também mostra que as pessoas são parte importante do processo de conservação. As comunidades indígenas que tiverem interesse podem ser incluídas em projetos de conservação nesse bioma tão ameaçado e que é prioritário no mundo para restauração”, analisa Rayna Benzeev.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 13 – Ação Global Contra a Mudança Climática

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