Há usuários de crack em Goiânia, muito embora a Polícia Militar (PM), a Polícia Civil, as secretarias de Saúde do Estado e do município, bem como a de Assistência Social (Semas), o Ministério da Saúde não saibam estimar quantos eles são. “Nós não temos essas informações precisas”, admite o major Eldecírio da Silva, comandante do 1º Batalhão da Polícia Militar, no Centro da cidade. Gravações em câmera escondida mostram que a presença nas ruas de quem lida diretamente com a repressão ao crack tem efeito dispersivo sobre as concentrações de usuários da droga.
Não obstante, a corporação mapeou onde estão as populações em situação de rua. O levantamento foi concluído na primeira quinzena de março e nele constam 32 pontos de aglomeração distribuídos pelos setores Central, Coimbra, Oeste, Marista e Sul – regiões que o Comando de Policiamento da Capital prefere não sustentar nem a mais óbvia das suposições sobre o porquê da escolha pelos consumidores de crack em situação de rua: o fato de, centralizada, ser uma zona de convergência para viciados de diversos extremos da cidade.
No ano passado, a Polícia Civil, por meio da Delegacia Estadual de Repressão a Narcóticos (Denarc), estudou dez locais de concentração de usuários para consumo do crack. Ao delegado Odair José Soares, titular da especializada que realizou a pesquisa, as áreas da Praça do Trabalhador, Centro, e Bairro São Francisco, na região Norte da capital, acenam fortemente para a formação de cracolândias em Goiânia. Ele diz que “se não forem feitas ações multidisciplinares do Estado”, ambos os locais “podem virar alguma cracolândia”. Da mesma forma que a PM, a Polícia Civil não identificou numericamente a população de usuários de crack na capital. “Nós não temos números fechados, mas ali na região do São Francisco, em qualquer horário a gente encontra sempre 10, 15, 20 pessoas” – volume que, também conforme o delegado, eleva-se no período da tarde e da noite.
Ainda no âmbito do governo estadual, a coordenadora de Enfrentamento ao Álcool e Outras Drogas, Elaine Fernandes da Cunha Mesquita, diz que existem poucas inciativas de levantamento epidemiológico. Segundo ela, somente do ano passado para cá a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg) liberou recursos para essa modalidade de pesquisa. “A rotatividade das pessoas é muito grande. Se a gente for fazer um levantamento do usuário do crack na rua, tem pessoas que estão chegando e saindo. Então, coletar o dado dessa população também é muito complicado”.
A conclusão vem de uma experiência realizada por Elaine em 2011, quando atuava em um projeto municipal estimulado pelo governo federal: o Consultório de Rua, que consiste no atendimento in loco às pessoas que vivem nas ruas ou, apesar de possuírem lar, optam pela estadia em vias públicas, como é praxe entre viciados em crack. “A pesquisa que a gente queria, de levantar o perfil desse usuário, ficou super incompleta, não deu nem para publicar. Porque uma pessoa nessa situação (de rua) que hoje você entrevista, amanhã já não está ali.” A coordenadora de Enfrentamento ao Álcool e Outras Drogas arremata o raciocínio justificando que a flutuação de usuários de crack nas ruas se dá por fatores como repressão policial e migração de uma cidade para outra por parte do consumidor da droga.
Em nova tentativa, o mesmo projeto itinerante acaba de tabular informações coletadas em dois anos de abordagens aos grupos em permanência ou provisoriamente nas ruas. O levantamento de dados resultou do contato da equipe do Consultório de Rua com o público-alvo do projeto “através de diversas ações como prevenção às DSTs e Aids, orientações sobre o uso abusivo relacionado à questão de drogas, a ressocialização familiar, reencaminhamento para trabalhos, para escolas, todo processo do cuidado da pessoa em situação de rua, desde simples curativos ao espaço de escutas, e diversas outras atividades dentro do possível que essa pessoa que está no espaço da rua nos deram a oportunidade”, enumera Elandias Bezerra Sousa, atual coordenador do Consultório de Rua, para quem em Goiânia “infelizmente nós temos uma predominância muito grande do consumo de crack”.
Pesquisa
O estudo inédito da Secretaria Municipal de Saúde – cujo conteúdo foi obtido com exclusividade pela reportagem da Rádio 730 – é fruto de 22 meses de trabalho – de março de 2011 a janeiro de 2013. O Consultório de Rua acumulou cerca de 450 prontuários, sendo esta a amostragem em que se baseia o levantamento. Grande parte das pessoas foi abordada por no máximo duas vezes, “o que prejudicou a coleta de dados” – aponta o relatório –, uma vez que questionamentos são feitos apenas a partir da consolidação do vínculo, ou seja, quando estabelecido, no mínimo, o segundo contato. Com preponderância masculina (70%), os 150 atendimentos recentes são destinados a pessoas em situação de rua com faixa etária média entre 20 e 40 anos, dos quais 85% fazem uso de alguma substância psicoativa, “em especial de crack”.
Nos quase dois anos foram feitas 4.569 abordagens, cujas quantias mais expressivas deram-se em sete locais: Campinas (Praça Joaquim Lúcio, Praça Matriz, Cemitério e arredores do Supermercado Store) – 2.017; região do Terminal Dergo – 150; Praça do Racha e cercanias do Hospital Materno Infantil – 150; Praça do Trabalhador, Avenida Independência, Avenida Goiás, Rua 64, Rua 72 e Rua 84 – 1.153; Praça Walter Santos – 54; região do Terminal Padre Pelágio – 273; e região do Bairro São Francisco e do Projeto Macambira Anicuns – 547.
O coordenador do Consultório de Rua analisa o elo entre os usuários pelo viés da afinidade. “Por afinidade ficam às vezes mais próximos em algumas determinadas regiões, como a gente pode citar desde a região do São Francisco, na região dos motéis, à região de Campinas, entre Matriz de Campinas e Praça Joaquim Lúcio”, recorta Elandias Bezerra. “Outro ponto também com um foco muito grande de concentração é a Praça do Trabalhador, nas proximidades da Câmara Municipal, no final da Rua 72. Eles falam muito assim: ‘Por questão de amizade é mais fácil ficar aqui, perto uns dos outros’, que às vezes um tem (droga), o outro não tem, e terminam compartilhando.”
Mas nem a interação proporcionada pelo Consultório de Rua foi capaz de dar limpidez estatística à caixa preta do crack na capital goiana. “Não dá para dizer claramente quantas pessoas. Mas em algumas atividades do Consultório de Rua eu já pude observar até 20, 25 pessoas nesses espaços em consumo”, calcula o coordenador Elandias.
A Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) recuou do percentual de 34% de moradores de rua dependentes em crack, divulgado no ano passado. Recuou porque dá o número por insuficiente. Toda porcentagem parece atentar contra a realidade inalcançável do crack. Talvez por isso o Ministério da Saúde não ouse mensurar seu raio de abrangência.
Origem
Doutora em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), Dalva Maria Borges considera o ano de 2005 o ano de surgimento do crack em Goiás, mas aponta 2008 como o estopim de sua disseminação mais violenta. A droga teria aparecido no Estado primeiro em cidades do interior para só depois mirar a capital como rota de tráfico. O custo da pedra – módico se comparado a outras drogas sintéticas – deve ser multiplicado pelas repetidas vezes que o consumidor a procura para chegarmos à dedução de que o crack é um ‘barato’ que sai caro. “A pedrinha custa barato, mas ela tem que ser consumida constantemente para manter os efeitos, então acaba saindo uma droga muito cara”, pondera a socióloga, ressaltando atribuições do tráfico que pesam sobre o próprio usuário. “Os viciados acabam sendo colocados pelos traficantes até para o fornecimento da droga, como aviõezinhos, como traficantes também.”
A subjugação do consumidor do crack pelo fornecedor do narcótico é alvo estratégico da Polícia Militar, de acordo com o major Eldecírio da Silva. “Quando um traficante vê que a polícia está junta dos usuários, ele não arrisca chegar e muito menos a deixar droga com eles para ser vendida, porque sabe que nós podemos pegar e é prejuízo para ele, e o morador de rua não tem como pagar. Essa tem sido a principal ação que nós temos feito.”
Mesmo para os que têm casa, comida e roupa lavada, as cracolândias, isto é, os espaços compartilhados entre dependentes para obtenção e consumo do crack, são a opção mais aconchegante de morada. A professora Dalva Maria Borges afirma que, como é uma droga que retira a pessoa de seus vínculos mais próximos, ela vai se afastando do convívio de família, da escola, do trabalho etc., e começa a se juntar com pessoas que também consomem a droga, seja para usarem juntas, seja como proteção, seja para adquirirem a substância juntas.
Elaine Fernandes da Cunha Mesquita, da Coordenação de Enfrentamento ao Álcool e Outras Drogas, comenta que “algumas ações da polícia igual à Operação Salus (deflagrada em janeiro de 2012 com o intuito de retirar das ruas as pessoas em estado de drogadição) dispersaram os usuários para a cidade inteira. Hoje a gente vê grupos menores que estão em vários outros locais”, explica.
Destino
A socióloga Dalva Maria Borges não delineia o alcance do uso do crack em Goiânia, segundo ela, porque nós não temos ainda pesquisas que dimensionem isso. “A própria polícia não sabe. A Secretaria de Cidadania também não sabe. A gente não tem políticas públicas voltadas para esse segmento” – opinião partilhada pela coordenadora de Enfrentamento ao Álcool e Outras Drogas, Elaine Fernandes, para quem “o poder público acha que consegue (resolver o consumo do crack) com medidas tipo expulsão, fichar as pessoas, e não consegue resolver o problema. Às vezes até mesmo agrava”.
Perguntado sobre a eficácia das medidas de dispersão adotadas pela Polícia Militar, o delegado Odair Soares, da Denarc, dá resposta categórica: “Isso não deu certo em São Paulo, não vai dar certo aqui. Tem que ser uma ação multidisciplinar, não é uma ação de polícia. Não é a polícia que vai impedir a criação ou acabar com uma cracolândia, e sim todas as secretarias juntas: de Segurança, de Saúde, de Educação, de Assistência Social. Nós temos que dar as mãos para termos alguma chance.”
Elaine Fernandes da Cunha Mesquita avalia que enquanto não houver o conjunto de ações intersetoriais – “que não sejam simplesmente mudar a pessoa de um lugar para outro” – para garantir que essa população seja realmente cuidada, nós vamos ter a continuidade e até o aumento de consumidores de crack em situação de rua.
Em Goiânia, na sociedade anônima que orbita em torna da pedra de crack, o cachimbo repetidamente aceso de hoje ilumina um futuro escuro que, se enxergado à luz do que acontece em São Paulo, na compreensão da socióloga Dalva Maria, está ainda distante de ser atingido, “porque a cidade é menor, porque o crack entrou há um tempo mais recente, mas em termos de resposta do poder público não é muito diferente”, lamenta.
Pelo lado da Polícia Civil, o titular da Delegacia de Repressão a Narcóticos do Estado acredita na construção de clínicas para oferta de tratamento público a dependentes químicos como a porta de saída do consumo do crack. O comandante do 1º Batalhão da Polícia Militar, Eldecírio da Silva, por outro lado, percebe como recurso barrar o acesso às drogas. “A melhor solução seria se o traficante tivesse dificuldade de acesso até elas (as pessoas que usam crack).”
Com tantas soluções postas à prova da realidade, em que estratégias aplicadas incidiram, seja dissipando, reprimindo ou orientando, sobre o problema – este sempre refratário –, a fratura exposta da falta de conhecimento sobre quem, amiúde, e quantos são os consumidores de crack diagnostica a ineficácia do poder público quanto à “medicação” oferecida, na medida em que o melhor remédio é saber a fundo a epidemia que estamos combatendo e de que afetados estamos tratando. Ou as ações contratadas não passariam de sucessivas doses de placebo contra um mal crônico?