Uma missão que o pai de Cristóvão Tsereroodi Tsoropre sempre almejou foi trabalhar à frente de tudo aquilo que a comunidade acredita que seria a educação. É com essa lembrança na mente que o professor será o primeiro indígena a defender uma pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Goiás (PPGEO|UEG), no Câmpus Cora Coralina, às 19h do dia 14 de dezembro, na Cidade de Goiás. 

O estudo “Pandemia da Covid-19 para o povo Xavante da aldeia de São Marcos (MT): relatos de um cacique” nasceu de fatos vividos por eles e os demais moradores da aldeia de São Marcos, localizada no município de Barra do Garças, no Mato Grosso. Então, desde 2015, Cristóvão trabalha como Professor Intérprete da Língua Materna na Secretaria de Educação do Estado de Goiás (Seduc), em Aragarças, e voltou para a aldeia com dois alunos quando as escolas fecharam as portas por causa do coronavírus, em 2020.

Sala de aula vazia (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

O relato de Cristóvão detalha como educação e saúde são coisas que sempre andaram juntas e que a pandemia mostrou que essa associação é muito importante. “Essa é a temática que levantei, que apesar da dificuldade do momento conseguimos dar importância para os dois: a educação e a saúde. Nós saímos vitoriosos”, disse.

A vitória foi sobre as dificuldades para acompanhar as aulas remotas. Durante a pandemia, Cristóvão acompanhou os dois estudantes que estavam cursando o terceiro ano do ensino médio. Assim, em meio ao desafio para continuar os estudos,  o período foi marcado com choros em funerais e solidariedade. “Nós fomos solidários uns com os outros, todo mundo viu, sentiu, chorou junto e guardou as esperanças. Então, esse trabalho é para refletirmos”, ressaltou Cristóvão.

Educação

A trajetória educacional de Cristóvão começou na aldeia São Marcos na Escola Estadual Indígena Dom Felippo Rinaldi. Na escola da aldeia, ele aprendeu a ler e escrever com os padres da Missão Salesiana de São Marcos e foi lá que concluiu o Ensino Fundamental em 1990. O professor recorda que não havia a possibilidade de seguir os estudos no local e que concluir a oitava série era um grande festa para todos na aldeia.

“Antigamente, a oitava série parecia alguém se graduando, era uma festa na aldeia porque não tinha o ensino médio naquela época. Então, chegava na oitava série todo mundo na aldeia toda fazia festa porque um filho conseguiu concluir o ensino fundamental. Por isso eu saí da aldeia para a cidade”, contou. 

Então, o caminho de Cristóvão fora da aldeia São Marcos começou em Presidente Prudente, no interior de São Paulo. “A dinâmica da vida não é uma coisa parada, se eu achar que as coisas têm que vir até mim, elas nunca vão chegar, temos que ir atrás”, relatou. Então, ele foi para a cidade se aperfeiçoar em cursos de Língua Portuguesa. 

Foto: Arquivo pessoal/Cristóvão Tsereroodi Tsoropre

Língua Portuguesa

Foram seis anos morando em Presidente Prudente para superar as dificuldades com a Língua Portuguesa. Desta época, o professor guarda as lições que levou do pai e também as que aprendeu vivendo sozinho em um lugar desconhecido.

“Meu pai sempre falava que era preciso sair fora das suas casas, morar num lugar desconhecido, sozinho, para aprender a sentir a presença do outro e amar o outro, isso foi muito bom para mim. Eu aprendi a amar porque não tinha alguém perto de mim para mostrar a minha aflição”, comentou.

Após se aperfeiçoar em Português, Cristóvão concluiu o Ensino Médio, em 1997, na Escola Estadual Antonio Cristino Corte, em Barra do Garças. E então seguiu os estudos com uma graduação em Filosofia, na Universidade Católica Dom Bosco, e com uma licenciatura em História, no Centro Universitário do Vale do Araguaia (Univar). Depois, Cristóvão se tornou professor.

Durante esse processo, esteve afastado do povo Xavante e recorda do período como resultado da lição que aprendeu com o pai sobre sair de casa e aprender a amá-la. “Eu aprendi a amar e a valorizar a minha cultura durante os anos que não tive a oportunidade de estar com a minha comunidade”, disse.

Avanço

Cristóvão foi para São Paulo com o desejo de continuar os estudos. Sua inspiração era seu pai, José Tsoropre Wa’u’é, que nunca estudou numa escola, mas aprendeu Português com os padres que faziam missões na aldeia. 

“Meu pai nunca estudou, ele era analfabeto, nunca passou em sala de aula. Ele aprendeu a falar Língua Portuguesa com os primeiros missionários. Enquanto menino, eu ficava maravilhado de ouvir meu pai conversar com o padre, contando histórias. Ele sempre foi o meu espelho”, lembrou. 

Cristóvão foi para a escola a partir das séries iniciais, avançou ao ensino médio e se graduou em universidades. E com o mesmo sonho almejado por José Tsoropre para a educação da aldeia, foi para a sala de aula propagar o que aprendeu. A disciplina de Filosofia, disse o professor, é muito difícil para os indígenas porque eles “não têm expressões filosóficas e vivem tudo agora e no tempo”.

“Não temos essa expressão filosófica que deixa a pessoa pensar porque tudo o que falamos é aquilo que vemos. Então, não tem outras explicações por trás das expressões e isso foi muito difícil. Tentei ensinar aquilo que aprendi e fazer meus irmãos Xavantes serem também pessoas críticas do mundo que vivem e não só aceitar tudo o que as pessoas oferecem se não é aquilo que a gente quer”, explicou.

Profissão

Cristóvão ficou pouco tempo na sala de aula da aldeia de São Marcos. Foi viver na cidade após receber um convite da Secretaria Municipal de Educação de Barra do Garças para trabalhar no Departamento de Educação Indígena e coordenar o trabalho de educação das aldeias.

“Tornei-me um coordenador geral dos trabalhos pedagógicos dos professores Xavantes da região e fiquei no cargo por 10 anos. Foi mais uma experiência que me serviu muito, pois pessoas que conhecem algo a mais precisam dar um suporte para que outras pessoas também cheguem ao seu nível”, destacou.

Na função, Cristóvão lembrou que ouviu muitas críticas de pessoas não indígenas por causa das diferenças de ensino aplicadas pelo povo Xavante e os professores que trabalhavam manuseando um livro didático.

“A educação escolar é uma coisa nova para nós porque sempre trabalhamos com educação tradicional, onde entendemos e sabemos o valor da transmissão educativa que cada comunidade tem. E, de repente, veio a sala de aula”, explicou.

Foto: missaosalesiana.org.br

Cultura

Para Cristóvão, a educação escolar na sala de aula foi um “impacto muito grande” na cultura da aldeia. “Tivemos uma educação onde a mãe se entrega totalmente para educar a filha enquanto os homens ficam com os pais. E a sala de aula veio unir, juntar a menina e o menino, e a escola bagunçou toda a nossa formação”, revelou.

Cristóvão também apontou os livros didáticos como algo fora da realidade das aldeias e viu, nesse processo, a oportunidade de ajudar, mas fora da sala de aula. “Sempre servi a minha comunidade, não na aldeia de perto, mas na ponta, lá onde tudo começa, no departamento, com a formação dos professores”, contou.

O trabalho no Departamento de Educação Indígena de Barra do Garças sempre foi muito importante para Cristóvão, que avalia que é necessário não somente dar aula para as crianças, mas também formar aqueles que vão ensinar as crianças.

Intérprete da Língua Materna

O trabalho realizado em Mato Grosso o fez ser convidado para ser Professor Intérprete da Língua Materna na Secretaria de Educação do Estado de Goiás, no município de Aragarças em 2015. Já em 2020, a Seduc informou que havia 46 professores intérpretes que acompanhavam estudantes indígenas em 14 escolas regulares de Goiânia, Goiás, Jataí e Aragarças. Cristóvão era um desses profissionais que exerciam essa importante atividade.

“Temos muitos alunos que vem para a cidade, muitas vezes, não alfabetizados, com muita dificuldade com a língua, então a Seduc fez esse levantamento e me procurou. Isso porque todo início de ano vem muitas matrículas de indígenas e no meio do ano ocorre a evasão bem elevada. Eles perceberam que precisavam fazer um projeto para garantir a permanência dos indígenas nas escolas”, reiterou.

Além de trabalhar diretamente para a permanência dos indígenas no ensino regular, Cristóvão inspira outros a trilharem a carreira acadêmica e avançarem nas especializações. “Achávamos que era impossível a gente fazer, mas quando a primeira pessoa trilha esse caminho tudo fica mais fácil para os que estão vindo atrás e eles percebem também podem passar por isso, não para ter apenas um título, mas para ter bagagem suficiente para trabalhar com o nosso povo”, contou.

Cristóvão dará mais um passo importante na sua formação aos 46 anos, no dia 14 de dezembro, e segue auxiliando outros a trilhar o caminho da formação profissional. Segundo o professor, ele já possui “seguidores” em Aragarças que, em 2023, tentarão o mestrado. Dois de seus filhos já são universitários: Adalberto Tserewede, que cursa o quinto semestre de Letras na Universidade Estadual de Goiás (UEG), e Alexamer Duprowe, que estuda Educação de Campo na Universidade Federal de Goiás (UFG). 

Defesa

A defesa da pesquisa de mestrado de Cristóvão será aberta ao público de forma presencial e transmitida no canal do YouTube da UEG.

Imagem: UEG

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