SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O ministro Kassio Nunes Marques concedeu medida liminar para suspender decisão do Tribunal Superior Eleitoral que cassou mandato do deputado Fernando Francischini por uso indevido dos meios de comunicação e abuso de autoridade nas eleições de 2018.

Os fatos da ação se referem a uma live na qual o então candidato afirmava que as urnas tinham sido fraudadas. Concedeu também medida liminar para suspender a cassação do deputado José Valdevan por abuso de poder econômico.

Ambos deputados beneficiados pelas decisões compõem a base aliada do presidente Jair Bolsonaro, reforçando a percepção de que a posição de Kassio no Supremo Tribunal Federal estaria alinhada aos interesses do presidente que o indicou.

Há uma série de outras considerações sobre as duas decisões do ministro, desde aspectos processuais e de seu conteúdo até dinâmicas institucionais e entre os Poderes que merecem atenção.

Elas revelam uma possível conturbada relação entre TSE e STF na definição das regras eleitorais neste ano; indicam que o abuso de poderes monocráticos pode seguir minando a autoridade do tribunal e que os ataques vindos do presidente Bolsonaro à Justiça podem ter encontrado eco dentro do tribunal.

Processualmente, seguidas excepcionalidades precisaram ser adotadas para permitir a avaliação do caso pelo ministro Kassio.

A exceção à livre distribuição entre ministros do STF dos casos (por alegada prevenção em razão da relatoria de Kassio em outra ação semelhante), a excepcionalidade da concessão da liminar e a excepcionalidade na avaliação probatória foram todas reconhecidas juntas para que, ao final, fosse dada a decisão.

O seu conteúdo, por sua vez, contraria a interpretação que o TSE tem feito sobre a ilicitude eleitoral da divulgação de fake news contra a integridade das eleições, tema que também tem sido objeto de atenção do Supremo sob a perspectiva penal.

Na decisão relativa ao deputado Francischini, o ministro Kassio não viu gravidade no ato para fins de aplicação da sanção eleitoral.

Na prática, a decisão dele sinaliza que discursos e pronunciamentos contra a integridade das urnas e das eleições estariam permitidos pela legislação eleitoral -não só em relação a atos passados, mas também para as futuras eleições de 2022.

Sua posição se alinha, de certa forma, ao voto que não viu crime contra o estado democrático de direito nas falas do deputado Daniel Silveira, julgamento em que ficou vencido.

Kassio considerou, também, que haveria violação à regra da anterioridade ao aplicar uma interpretação que seria “nova” ao equivaler redes sociais a meios de comunicação para fins eleitorais, ainda que o tema seja disciplinado no TSE, pelo menos, desde 2015.

Esses pontos foram questionados em ação proposta contra a decisão do ministro Kassio, que está sob relatoria da ministra Cármen Lúcia.

A ação aponta que houve fraude na distribuição das ações ao ministro Kassio, permitindo que os deputados cassados escolhessem o ministro que julgaria os seus pedidos (retirando de Cármen Lúcia e passando a Kassio), e que a decisão de Kassio seria teratológica e, portanto, ilegal.

Assim, em plenário virtual agendado para esta terça-feira (7), para além do mérito da decisão, os ministros do STF julgarão se Kassio poderia ter atuado no caso.

No contexto mais amplo, o Supremo revisará não só ato de um dos seus ministros, mas
também uma decisão do TSE adotada por colegiado que conta três ministros do STF: Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso.

Em razão desse arranjo institucional, onde membros do STF compõem também o TSE, sempre foi perceptível uma certa conjugação de entendimentos entre as duas cortes.

Essa conjugação ficou mais evidente nos últimos anos, diante de esforços institucionais feitos pelo TSE e pelo STF para combater discursos falsos que colocam dúvidas sobre a integridade das urnas eletrônicas e das eleições. Agora, a decisão monocrática do ministro Kassio desafia esses esforços.

Não é de hoje que o abuso de poderes monocráticos se mostra como um entrave a uma atuação mais segura e consistente do Supremo.

Decisões individuais excepcionais, bloqueios oportunistas de pauta de julgamentos, pedidos de vista por prazo indeterminado sempre foram vistos como atos que enfraqueciam a resposta do tribunal.

Por isso, não à toa, quando o Supremo se viu atacado e ameaçado pelo presidente da República e seus seguidores, passou a decidir mais colegiadamente, liberando rapidamente liminares para serem referendadas ou aguardando para decidi-las em plenário.

O tribunal sabe que agindo coletivamente é mais forte e suas decisões mais seguras. Foi assim que o tribunal se comportou no julgamento de ações sobre atos do presidente relativos à Covid-19, por exemplo.

É no contexto que estamos, de ataques constantes à Justiça Eleitoral e ao próprio Supremo, que as decisões monocráticas de Kassio apresentam um desafio adicional: elas rompem não só a união do tribunal em sua própria autodefesa, mas rompem também a linha de defesa que tem sido criada pelo STF e pelo TSE para garantir a integridade das eleições e o respeito ao seu resultado.

Para um ponto de erosão democrática que atua por dentro do tribunal, a colegialidade será a resposta.