A tragédia no Rio Grande do Sul é lamentável sob todos os aspectos e suscita uma pergunta: poderia ocorrer em Goiás? A resposta é repetida por quem frequenta boates em Goiânia e no interior: sim, é possível. A fiscalização do Corpo de Bombeiros é falha e diversos estabelecimentos sequer passam por sua inspeção, ou recebem alvarás após a satisfação de requisitos irrisórios, ou se submetem a reformas descaracterizadoras das condições analisadas. Enfim, a dor que aquelas centenas de jovens suportaram e o sofrimento enfrentado por suas famílias e amigos poderiam ter sido evitados lá e, por milagre, ainda podem ser evitados aqui. Para isso, basta que as autoridades, e não apenas dos bombeiros, deixem de preguiça, omissão, incompetência e demagogia.
Nas boates e outros locais de eventos da Capital e das principais cidades do interior, as rotas de fuga são tão raras quanto funcionários aptos a lidar com multidão. Não raro é segurança de boate, boteco e show matar frequentador. Não raro é trancar a única porta do lugar quando surgem brigas no salão. Policial, por exemplo, entra armado nesses locais estando a serviço da corporação ou do bico ou mesmo se divertindo. A referência a polícia e bombeiro é casual. É preciso citar os chefes, são os chefes que mandam e, principalmente, desmandam. Todas as autoridades estão na vala comum da inutilidade delituosa: governador, prefeitos, secretários estaduais (o de Segurança Pública) e municipais (notadamente o de fiscalização), comandantes militares, chefes de polícia, promotores e juízes.
As autoridades têm conhecimento de tudo isso e nenhuma toma providência porque fingem que não é com elas, nem com filho delas, nem com amantes ou assessores. Admitem a profusão de banquinhas no meio da rua para ganhar votos de feirantes e camelôs. Autorizam boates e botecos, sem qualquer estudo de impacto, por imposição de vereadores pilantras e deputados vagabundos. Não dão ouvidos a reclamações porque não é nas orelhas delas que o som alto ribomba. São autoridades frouxas, pois evitam falar grosso com os violadores e piam fino na mão de seus financiadores. São autoridades monstruosas em suas atitudes e diabólicas em suas omissões. Que Deus nos livre desses trastes e o voto os mande para o inferno. Antes de o fogo arder nalgum estabelecimento, que esses criminosos queimem no porão do esquecimento popular, cumprindo pena pelas atrocidades de que foram responsáveis direta ou indiretamente.
É desnecessário rebatizar as palavras ou escolher termos amenos para esses monstros. Se a boate tem 2 mil pessoas e apenas uma porta, um monstro deu a papelada para funcionamento ou se omitiu ao fiscalizar a permanência da ilegalidade. São monstros os que autorizam espigões em ruas estreitas como as do Jardim Goiás, em Goiânia. São monstros os que permitem a construção de prédios imensos sabendo que a Escada Magirus, a melhor do Corpo de Bombeiros, só alcança até o 10º andar. Um incêndio do 11º ao 30º será fatal. Em tese, a empreiteira deveria cuidar. Não cuida. Ninguém cuida. Como ninguém cuida dos hidrantes. Como falta Defesa Civil (é composta por alguns militares e mais nada), como falta dar valor à vida alheia. Aí mora o princípio das desgraças: as autoridades monstruosas acham que nunca vai acontecer tragédia e, caso ocorra, elas não estarão lá como vítimas, apenas para dar entrevistas enquanto os corpos são recolhidos.
Analisemos um detalhe, presente em todas as cidades, o comércio de rua. As feiras, e não somente as grandes, são um perigo constante. Na Feira Hippie, uma imensa praça de negócios aos sábados e domingos, há lanchonetes entre as barracas, com gás, chama, gordura quente. Uma banca encosta na outra, os fios de energia ligam todos os pontos… É melhor nem imaginar se houver incêndio numa banca de salgados no meio da feira, Aliás, é melhor imaginar, porque as vias laterais estão completamente congestionadas e não haveria como a multidão escapar. Fogo, fumaça, correria, pisoteio… É melhor nem imaginar o número de vítimas entre as mais de 100 mil pessoas. Aliás, é melhor as autoridades pensarem logo nisso.
A Feira Hippie não é a única candidata a tragédia. Como Goiânia é a capital mundial da demagogia, a prefeitura autoriza feiras como quem troca de camisa e tolera as ilegais, com cinco em cada dos 800 bairros, 4 mil delas por semana. Só Jesus na causa. Mas a gente paga impostos é para as autoridades agirem. Se elas se omitem, são criminosas. E é isso o que as autoridades municipais e estaduais são: criminosas. As autoridades são muito bem pagas para prevenir tragédias e preferem dormir em prostíbulos a cumprir seu dever.
Melhor nem listar os motivos de o supermercado na Argentina trancar as portas para que a freguesia não saísse sem pagar. E a clientela não saiu mesmo: morreu carbonizada lá dentro. Assim é a boate gaúcha. Assim seria também em Goiás, porque a ganância de empresários bandidos só não é maior que a incompetência generalizada do poder público. Dá-se aqui de exemplo o incêndio, mas igual ocorre na alimentação. Se o morador não pagar IPTU, a prefeitura pode tomar-lhe a casa na Justiça, mas nem a prefeitura, o Estado nem a Justiça tomam providências quanto ao que ocorre na rua, seja a comida deteriorada, ou o assalto, ou o carro furtado. Estamos todos ao deus-dará. Ainda bem que Deus dá. E Deus nos tem dado o que temos nos negado via voto: pessoas competentes e responsáveis nos postos-chaves. Quando é para nomear alguém, o prefeito e o governador direcionam para os partidos de suas bases, não para técnicos ou políticos capazes. O resultado é o que se lê nos olhos das vítimas e o que se ouve no choro de seus familiares.
O jeito é orar muito ao acordar. Ou errar pouco ao votar.