Eles moram num local nobre, um dos metros quadrados mais caros de Goiânia. Vivem ao ar livre. Mas livre ali é apenas o ar. Eles mesmos estão atados à droga. Não escondem o mal por entre os dedos, a pedra que lhes consome a vida está à mostra. Impossível amoitar a decrepitude. Pela frente, nenhum futuro. Na frente, um vizinho ilustre, Pedro Ludovico Teixeira. Não o fundador da Capital das cracolândias, mas o palácio sede do governo e a praça com palácios de dois governos, o Estadual e o Municipal, abrigo do Tribunal de Contas e da Procuradoria-Geral. Todo cidadão tem direitos, no entanto, nem todo cidadão tem direito a abrigo.
Como a Capital, a cracolândia ao lado da sede do poder começou tímida. No início, eram dois rapazes. Próximo ao Natal, em vez de o clima de festa tomar conta também deles, continuaram ali, com cara de enfezados, com a cara cada vez mais esquálida. Veio a mudança de ano e a vida deles não mudou nada. A única mudança foi a de vizinhos para lá. Mais que vizinhos, colegas de quarto, dormem lado a lado.
A dupla inicial parece ter saído do ponto, ou morreu, ou sei lá o que mais, mas prosperou sua ideia de habitar o local. Agora, são 12, às vezes mais, às vezes menos. De tão normal, o fato de alguém morar na calçada nem mais incomoda. A chegada do frio também não os incomoda. Dormem sobre cobertores finos e sob a noite. Seu sofrimento não dói em quem passa o dia inteiro por eles. Apesar de invisíveis, quem trafega rumo ao palácio desvia deles por medo de sujar o sapato. Os motoristas não perdem tempo a observá-los, preferem limpar as narinas enquanto esperam o sinal verde.
Nas primeiras horas da manhã, os vizinhos do poder estão deitados na calçada da Rua 84, a distância de grito de 32 secretários de Estado, do governador Marconi Perillo e de seu vice, José Éliton Júnior. Mas os craqueiros não gritam. Não têm voz. O crack roubou-lhes até a capacidade de emitir um lamento. Mas eles não lamentam. Não têm indignação. Só querem fumar. No prédio vizinho, a sede do governo, “trabalham” dezenas de policiais civis e militares. Nenhum vê quem leva a droga para a cracolândia sob suas barbas, debaixo de seu nariz. O crack não brota da sarjeta nem cai do céu, alguém o leva e o vende nas cercanias do poder. E ninguém vê. Como seus clientes, os traficantes também são invisíveis.
Daqui, da calçada, se veem as luzes acesas. Acaso se trabalhou a noite inteira naquelas salas luxuosas? Aqui, na calçada, a noite também foi longa. De lá, das salas, ninguém nota as cenas. Lá, no palácio, a marquise é larga, seria ótima para uma cracolândia. Bom, por enquanto, é um fumódromo, mas da droga com CNPJ e usuários com contracheque polpudo. Aqui não tem marquise, só a cerca. Entre os habitantes da calçada e os da casa, a cerca, plantas com espinho, um muro com fios elétricos, os ofendículos.
Na cerca, os molambos estendidos com dupla função, pegar sol e marcar território. No chão, os farrapos humanos estendidos sem função alguma além de marcar estatística. Consomem crack há meses, há anos. O cérebro está comprometido, a boca escancarada, cheia de dentes moles, esperando a morte chegar. E a indesejada das gentes os visitará, mais cedo, mais tarde. Mais cedo. Pode ser a dívida com o traficante, o grupo de extermínio ou qualquer desculpa que os bacanas inventam justificando as bacanais com o sofrimento alheio.
Cada corpo é apenas mais um número na estatística macabra. Recentemente, trinta deles foram mortos, dez vezes mais que no atentado em Boston. Serão aqueles ali os próximos? Ó, meu Deus, tomara que não. Eu os vi, olhei nos olhos de um, não havia nada ali dentro. Apenas um cidadão que sequer espera o socorro vir de quem devia ampará-los: os vizinhos do prédio em frente.