As sirenes das indústrias eram os relógios dos moradores campineiros. Podiam ser ouvidas de muito longe, naquelas manhãs cujos barulhos só dos cantos de galos e garnisés e dos latidos dos cachorros. Em todas as casas tinham os galináceos e os cães e a partir do primeiro toque da sirene se responsabilizavam por mostrar que a vida começava em um outro dia.

A sirene do Curtume São José, que ficava lá nas margens do Ribeirão Anicuns, no final da Vila São Paulo, tocava às cinco horas, hora que os galos e garnisés abriam o bico. O cantar do bando ouriçava a cachorrada e as latidas começavam. Às seis da manhã a sirene do Arroz Ibiá também tocava. Era a hora que a maioria se levantava.

Àquela altura os padeiros já haviam deixado nas capangas de brim, ou cestos de taboca pendurados no lado de dentro dos portões, o pão nosso de cada dia. O segundo expediente das mães era ir buscar o pão, o primeiro era puxar a água na cisterna, encher o livro, com asa, de água molhar a escova com o Kolynos, escovar os dentes e lavar o rosto.

Era um tempo estranho: os muros eram baixos e os portões também. Todos deixavam os recipientes para o padeiro depositar o pão pendurado no portão e ninguém roubava o pão de ninguém.

O padeiro mais famoso era seu Zé Dentinho, que tinha os dentes muito pequenos, voz grossa e era magrelo. Pegava os pães na Panificadora Pão de Ouro, antes da sirene do São José tocar, colocava numa cesta enorme amarrada na garupeira da bicicleta, cobria com uma toalha branca e ia distribuindo de casa em casa. Era conhecido da cachorrada, que não se manifestava quando Zé Dentinho deixava o pão, tinha de amarrar a boca da campanha ou fechar o cesto para os cachorros não comerem o deixado.

A última sirene a tocar era da Máquina de Beneficiar Arroz Madalena. Sete horas ela zoava – era o sinal para a criançada rumar para os grupos: as aulas começavam às 7h15 e às 7h20 os portões já estavam trançados. A tolerância com o atraso era de cinco minutos e não tinha perdão.

Todo mundo de uniforme: saias e calças azuis, camisas brancas, com o distintivo da escola no lado direito do peito, servindo de bolso.

As pastas eram muito simples. De plástico ou pano – a maioria feitas pelas mães. Só os mais riquinhos tinham pastas compradas nas lojas dos turcos da 24 de
Outubro.

O calçado também era padronizado: congas azuis, com meias brancas, para meninas e sapatos Vulcabrás pretos, com meias pretas para os meninos. Meninas de saias (nada de bermudinhas) e meninos de calças curtas de suspensórios.

As congas que eram de pano com solado plástico não, mas os sapatos davam um chulé lascado e por isto ficavam de fora de casa, no retorno da escola. Como eram vulcanizados e de um plástico emborrachado (que parecia couro) as mães mais caprichosas, faziam os filhos lavarem os benditos todos os dias, junto com as meias. Diminuía, mas não desodorizava o chulé.

O Carlinho arrumou um espelho com mulher pelada na parte de trás e pregou com durex na bico do sapato, para enfiar o pé por baixo das pernas das meninas, na fila pra pegar o leite, na hora do recreio e ver as calcinhas. A Fátima notou e enfiou a mão na cara dele.

Dona Maura, diretora do Grupo Escolar Victor Coelho tacou uma suspensão de três dias e, quando voltou, o Carlinho teve de levar dona Belinha que de quebra ainda lhe deu uma surra. Se não bastasse teve cinco dias para apresentar 20 cópias do Hino Nacional Brasileiro, como castigo da escola.

Foi aí que o Carinho viu o quanto nosso Hino é grande. Foi dar uma de esperto, arrumou umas folhas de papel carbono com o Israel, que trabalhava na Escola de Datilografia do Seu Domingos e com 10 cópias matou o castigo. Só que Dona Maura descobriu fácil e o jeito foi fazer as outras 10 cópias de sexta-feira até segunda, para não ser expulso.

Lá perto do Curtume São José tinha uma casinha branca suspensa sobre o Ribeirão Anicuns. Havia sido um moinho de beneficiar o milho para fazer canjica, fubá
e farinha. Era tocado por uma roda d’água instalada na correnteza do rio. No início dos anos de 1950 foi desativado e os paulistas que eram donos do negócio, desmontaram a engenhoca e voltaram para São Paulo.

Só a casinha ficou lá, com a água passando por baixo das tábuas que serviam de baldrame. Foi ali que a Maria Macaca achou lugar para dormir abrigada da chuva, embora às vezes acordava com a água atingindo o papelão que servia de colchão.

Era muito agressiva. Banho, só os dados na marra pela Dona Dita do seu Roque. Logo que a viu perambulando pelas ruas de Campinas, Dona Dita a reconheceu. Havia morado próxima à fazenda do Quincas Lobo, lá pelos lados da cidade do Sá Lobo, que depois passou ser chamada de Araçú.

Maria Macaca, na verdade Maria das Dores, era filha de um casal negro, com debilidade mental, fruto de sequenciados casamentos entre primos. Sebastião e Maria de Jesus, que também eram primos tiveram o casamento estimulado pelos pais, para um cuidar do outros, já que as duas famílias tinham dificuldades para alimentar aquelas bocas, embora ambos tivessem aprendido trabalhar, debaixo de surra de vara de angico.

Sebastião, chamado de Tião Rudia, era mais lúcido. Entendia bem as coisas, roçava e capinava com capricho, mas com baixa produtividade. A Maria, chamada de Lia do Rudia, era bem mais atingida pela debilidade, mas conseguia fazer a comida, fazer sabão das carniças das vacas e tripas dos porcos, lavar a roupa da família, a da casa grande e limpar o rancho de pau a pique e chão batido em que moravam. Eram alegres, gostavam de festas e só dançavam um com o outro – ambos eram ciumentos.

Viviam nas terras do Quincas Lobo, homem de poucas palavras, casado com Dona Lurdes Gouveia, mulher de muito orgulho e grossa com quem vivia na fazenda. Ali ninguém tinha salário. Cada família plantava o arroz, feijão e milho, davam a metade para o Quincas. Todos eram obrigados a participar dos serviços da fazenda, pela meia da roça: tirar leite, amansar cavalos, tratar dos porcos, curar animais com bicheiras, roçar os pastos e por aí afora.

Na colheita da cana cada um recebia as rapaduras de adoçar o café até a próxima poda e todos tinham um litro de leite por dia, além de uma saca de café em coco por ano. Recebiam um leitão por ano, para capar e engordar. Vinha dele a carne, curtida na banha e a própria banha para fazer a comida.

Quem pedia abrigo na fazenda não saía. Paraguaçú tentou ir embora e descobriu que devia as rapaduras, o leite e o café, os leitões e para sair teria de pagar. Como não tinha um centavo, propôs deixar os mantimentos da meia como pagamento. Quincas não aceitou.

Madrugada funda de noite escura, amarrou a trouxa num cabo de guatambu, jogou no ombro e saiu sorrateiramente. Manezinho Zói Torto (que fazia este serviço para o Quincas) já estava vigiando e antes que ele embrenhasse no mato rumo a estrada, pipocou o tiro de garrucha, morreu na hora, foi arrastado para o mato, onde a cova já estava feita e enterrado imediatamente.

A Lia do Rudia engravidou e nasceu a menina, que batizaram de Maria das Dores. Desde pequena tinha graves problemas mentais. Os pais cuidavam como davam conta. Surra nenhuma fazia a menina dar conta de lavar pratos, varrer chão ou lavar roupas. E quanto mais crescia, menos capaz ficava. Não era agressiva com os pais e quando chegava alguém no rancho se escondia. Tinha muito medo da chuva com relâmpagos.

E tinha razão, todos os anos caíam raios e matavam animais lá na fazenda. A negra Rita Benzedeira contou pra ela que os raios não atingiam os chiqueiros, por isto não se via porco morrer por causa deles. Assim, quando começavam os relâmpagos, ela deixava o rancho e ia para o pequeno chiqueiro.

Na fazenda do Quincas Lobo só a casa grande era de alvenaria. As demais eram todos ranchos de pau a pique, cobertos por folhas de bacurí trançadas.

Numa noite de outubro o céu fechou em nuvem e os raios cortaram o horizonte iluminado o céu. Das Dores correu para o chiqueiro. O raio mirou o rancho. Ela viu na hora, mas ficou onde estava, com o medo costumeiro. Quando o dia amanheceu ainda chuviscava, voltou pro rancho e viu os pais mortos. Voltou pro chiqueiro.

Quando foi buscar as vagas para tirar o leite, Manezinho Zói Torto viu o rancho com parte caída. Chegou perto e topou com os dois bobos mortos. Viu que Das Dores não estava lá. Voltou para casa grande, contou pro patrão que mandou cavar uma cova grande lá na brenha do mato, onde quem queria deixar a fazenda morava eternamente e lá foram encerrados o Tião Rudia e a Maria do Rudia. Juntos na mesma cova, dentro de sacos de linhagem.

Quincas pegou a Das Dores à força, jogou dentro do Jeep, com ajuda do jagunço, trouxe para Campinas e a soltou lá pelas bandas da Capuava. Ela foi andando Campinas adentro, comendo o que achava nas latas de lixo, até achar o velho cômodo do moinho. A molecada logo colocou o apelido de Maria Macaca. Negra, dentes podres, baixinha e magrela, cabelos espetados cabeça acima e mal cheirosa.

Dona Dita do Seu Roque só descobriu toda história quando foi no Sá Lobo e contou para a prima Frauzina que a Das Dores estava vivendo nas ruas de Campinas. Frauzina contou o acontecido, conforme falava o povo.

Ao ver que Maria Macaca saía pegando resto de alimentos nas latas de lixo, logo algumas famílias deixavam litros com comida em cima dos muros e aos poucos ela foi sabendo onde encontrar o que comer. Começo da tarde e da noite a Maria Macaca saía para pegar os litros com a comida.

Era difícil, mas pelo menos uma vez por mês, Dona Dita mandava o Elcinho, o Edson e o Tomé pegar a Maria a força e levar para tomar banho. Ela mesma dava o banho. Um latão de água norna, bucha vegetal, sabão de bola e o litro despejando água enquanto a Maria esganiçava. Os três rapazes, mesmo fortes, tinham trabalho para segurar.

As vizinhas sempre deixavam com Dona Dita, vestidos velhos, para a troca no dia do banho. O que era tirado, tinha de ser queimado – fedia demais.

Os litros de comidas deixados nos muros trouxeram Maria Macaca para a casa de palha do Arroz, da máquina do Seu Zé Japonês. Ele não aproximava e nem deixava os moleques importunarem.

Quando os carroções iam recolher a palha, ela saía de fininho e só voltava à noite. Nos últimos tempos o Japonês ouvia gemidos e choro da Maria. Contou para Dona Dita. Ela marcou com os três rapazes para buscar a Maria e levar para o Adalto Botelho, onde os doidos viviam trancados, mas recebiam assistência médica.

Dona Dita acha que a Macaca desconfiou. Sumiu da máquina do Japonês e foi descoberta morta lá no cômodo do velho moinho, por um pescador que tinha uma ceva de piau ali do lado. Uma Kombi de vidros pintados que não deixava ver lá dentro recolheu o corpo. Falam que ela foi levada para a escola de medicina da UFG, que estava começando o funcionamento naquela época.