Logo na entrada do salão do acervo histórico, o público se depara com um quadro que remete ao célebre Independência ou Morte, de Pedro Américo, pintado em 1888. Mas, logo depois, vai percebendo que o altivo D. Pedro I junto com os soldados em seus cavalos não está em cena. Falta o gesto do grito do imperador com a espada no alto. Também falta o carro de boi do lado esquerdo carregado de toras, tão pouco comentado, que já evidenciava a devastação.
Além das cores da terra, tudo é diferente. As nuvens e o céu azul foram substituídos por nuvens de fumaça e as colinas ao longe foram desmatadas. A releitura de 2022, intitulada Independência e Morte, é de Jaime Lauriano, artista paulistano, 39 anos. Com essa paisagem da degradação ambiental, o artista abre a exposição Onde há fumaça – arte e emergência climática. Por meio da sua paisagem, o público interessado já é envolvido pelas reflexões da mostra. Suas obras substituem o heroísmo patriótico pela realidade do rompimento das barragens de mineração, do descaso diante dos problemas ambientais do Brasil. Interessante analisar os detalhes do quadro. Acima da tela, Lauriano traz uma série de bonecos que representam o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, entre outros.
Com a curadoria do grupo Micrópolis, formado pelos arquitetos e pesquisadores Felipe Carnevalli, Marcela Rosenburg e Vítor Lagoeiro, a exposição Onde há fumaça: arte e emergência climática surpreende por trazer um diálogo inusitado entre as obras do acervo do Museu Paulista com obras de artistas contemporâneos questionando o modelo de progresso do País.
“O Museu Paulista da USP traz uma oportunidade para refletir sobre como nos relacionamos com o meio ambiente”, explica Paulo César Garcez Marins, historiador e diretor do Museu Paulista. “Justamente nos aponta uma situação de crise muito grave, muito acentuada, e, portanto, estar aqui no Museu Paulista com esta exposição é entender esse processo longo com grandes consequências no presente e nos convida a ter uma postura crítica e, sobretudo, ações contundentes para mudar esse desequilíbrio com o ambiente que nos abriga.”
“Essa exposição nasceu de uma ideia que, na verdade, é compartilhada. É coletiva. Nós do Micrópolis, com a equipe de curadoria do museu, fizemos uma série de reuniões”, explica o curador Vitor Lagoeiro. “Na verdade, o próprio acervo do museu nos deu a direção para chegar a esse tema de emergência climática.”
Lagoeiro conta que a equipe começou a pesquisar e selecionar as imagens que integram a exposição observando cuidadosamente a ocupação do território brasileiro. “As cenas dessas obras do acervo dão uma ideia de progresso e desenvolvimento da época, uma noção que está pautada por uma prática de degradação ambiental”. O curador chama a atenção para as imagens da monocultura, latifúndios, ancoradas pelo trabalho e mão de obra escrava. “Foi um tempo de muita devastação e degradação ambiental. Observamos as árvores cortadas, fumaça, uma paisagem de floresta que vai ser gradativamente substituída pelo plantio de monocultura.”
Lagoeiro acentua que a proposta curatorial se baseia no exercício de um olhar mais demorado sobre as imagens da mostra. Olhar que instiga o espectador a observar as obras do acervo e as dos artistas contemporâneos. “A proposta é incentivar o espectador a escavar os detalhes que estão nessas imagens aqui expostas. Muitas vezes elas não vão revelar de primeira aquela evidência de uma origem da crise climática. Mas, se olhar com atenção, começa a ver no horizonte as matas queimadas, os rios sendo tamponados, a cidade se verticalizando, os animais sendo domesticados e o território sendo transformado radicalmente pela ação do homem e também pelo crescimento urbano.”
Estímulo a discussões
Onde há fumaça: arte e emergência climática traz uma iniciativa inusitada ao Museu Paulista, que é a de realizar uma mostra com uma curadoria externa. Com essa iniciativa, a instituição busca acolher a participação da sociedade. “Nossa meta foi abordar a memória e o patrimônio histórico como ferramentas de diálogo com o presente. Por isso, conectar nosso acervo com questões contemporâneas, como a emergência climática, é pauta central para a instituição”, afirma Aline Montenegro Magalhães, professora e chefe da Divisão de Acervo e Curadoria. “Assim, cumprimos nosso papel de produzir conhecimento histórico e de estimular discussões que impactam diretamente a sociedade e o futuro do planeta.”
Os espectadores vão observar pinturas e fotografias de importantes artistas do País que estão no acervo do Museu Paulista, como Benedito Calixto, Alfredo Norfini e Henrique Manzo; o fotógrafo Guilherme Gaensly registrando, em 1900, as mulheres lavando roupas nos rios de São Paulo, hoje poluídos. Ou as imagens dos trabalhadores nas fazendas de café, em 1924, registradas por Theodor Preising, entre outros fotógrafos. Artistas que hoje compartilham suas imagens com os pintores, escultores, artistas da atualidade de diferentes origens, entre elas quilombolas e indígenas.
Nesse trabalho coletivo estão Alice Lara, André Vargas, Bruno Novelli, Davi de Jesus do Nascimento, Anderson Kary Bayá, Jaime Lauriano, Luana Vitra, Mabe Bethônico, Roberta Carvalho, (Se)cura humana, Uýra Sodoma e Xadalu Tupã Jekupé. Todos juntos trazendo possibilidades diferentes para pensar a história e as transformações do País e do planeta.
Para a curadora Marcela Rosenburg, os artistas contemporâneos com suas maneiras de se expressar se unem em uma única meta. “As obras perpassam o universo do agronegócio, das florestas devastadas, da secura dos rios, do racismo ambiental e da exploração dos corpos. Mas também trazem a resistência do que resta, a potência do que se imagina e a esperança do que se constrói coletivamente.”
Na avaliação do curador, Felipe Carnevalli, a exposição destaca o Museu Paulista como um lugar de produção de conhecimento para além da arte e que também está no ativismo, na vida cotidiana e nas questões ambientais. “Vemos o museu como espaço de diálogo entre campos do saber, por isso o desejo de trazer, junto das obras dos artistas, trabalhos que não estão no contexto artístico, mas que subvertem a própria ideia de arte quando colocados nesse lugar.”
O morador do Ipiranga Laerte Toporcov, 86 anos, vê a exposição e, com a responsabilidade e interesse de quem conhece muito bem a história do bairro, elogia: “O diretor Paulo César Marins e os integrantes do Micrópolis estão de parabéns. O museu reforça a importância de sua presença no bairro, contando a sua história para as novas gerações.” Toporcov é idealizador da bandeira e do Hino do Ipiranga, é também fundador da Escola de Samba Imperador do Ipiranga e, como embaixador do samba paulistano, título que recebeu da Prefeitura de São Paulo, opina: “Temos dois motivos pontuais para nos orgulhar do bairro: o Museu Paulista da USP e a beleza do nosso samba bem paulistano”.
Acompanhado por Lagoeiro, o professor Vahan Agopyan observa cada detalhe da exposição. Reitor da USP de 2018 a 2022 e atual secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação, elogia: “O Museu Paulista destaca-se por ser uma referência na USP e no País. Esta exposição reuniu arte, história, ciência e tecnologia para criar um movimento de conscientização sobre a crise climática”. Agopyan conta que é um visitante assíduo do Museu do Ipiranga. “Fico tão atento e envolvido que, da última vez que estive aqui olhando as exposições, perdi a noção do tempo. Quando percebi o museu já estava fechado.”
A mostra apresenta trabalhos de pesquisadores como Ed Hawkins, cientista britânico do clima e criador das espirais climáticas e riscas de aquecimento. Traz, ainda, o ambientalista brasileiro Eduardo Góes Neves, muito atuante na Amazônia, e dos ativistas, projetos e movimentos sociais como Assentamento Terra Vista, Márcio Verá Mirim, Redes da Maré e Hãmhi Terra Viva.
Percursos
Os curadores sugerem um percurso que foi dividido em cinco núcleos: Monocultura, com 24 obras do acervo histórico e três obras contemporâneas, apontando como a prática moldou o território brasileiro e estabelecendo uma relação direta com a escravidão. Ao mesmo tempo, apresenta formas menos predatórias de manejo da terra aplicadas por povos indígenas e comunidades ancestrais. Com 14 obras do acervo e três contemporâneas, o núcleo Pavimentação traz a urbanização do território paulista e a impermeabilização do solo para refletir sobre como a cidade materializa uma ideia predatória de modernidade.
Em Transbordamentos, há 11 obras históricas e três contemporâneas que documentam visual e sensorialmente os efeitos do desequilíbrio climático causado pela intervenção humana nos rios, desde a impermeabilização do solo até o acúmulo de resíduos. O quarto núcleo, Domesticação, evidencia em 11 obras, históricas e três contemporâneas, a extinção de espécies. Mostra a suposta superioridade humana sobre os outros seres e aponta perspectivas da coexistência entre diferentes espécies, com foco em práticas indígenas, além do retorno dos bichos em situações sem a presença humana. O quinto e último núcleo, Força geológica, aborda o impacto humano na transformação geológica da Terra. São dez obras históricas e quatro contemporâneas que registram atividades como mineração, desmatamento e os desastres ambientais gerados por elas. Sugerem, ainda, práticas de incentivo à biodiversidade e manejo sustentável do solo.
Onde há fumaça – arte e emergência climática está na Sala de Exposições Temporárias, ala oeste do piso Jardim. O Museu Paulista da USP fica na Rua dos Patriotas, 100. De terça a domingo (incluindo feriados), das 10h às 17h (última entrada às 16h). A bilheteria está aberta a partir das 9h. Ingressos para as exposições de longa duração: R$ 30 e R$ 15 (meia-entrada). Gratuidades: quartas-feiras e primeiro domingo do mês, além de entrada franca para públicos específicos. Confira mais informações: https://museudoipiranga.org.br/visite.
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta matéria, o ODS 13 – Ação Contra a Mudança Global do Clima.
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