Paulo Freire, patrono da educação brasileira, sabiamente dizia: “É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo…”.

Nesse sentido, com o poema de Freire, a gente conta um pouco das histórias recentes de Dona Terezinha e da professora Nely, que se cruzaram ano passado em Caldas Novas, no Sul goiano. Terezinha Valim de Souza, de 78 anos é avó, mãe, e aluna da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no polo da Escola Municipal Mather Isabel. Nely Gonçalves é professora e coordenadora do projeto nesta mesma unidade de ensino.

A professora Nely e Dona Terezinha (Foto: Arquivo pessoal)

Há seis anos, todavia, Dona Terezinha sofre de Alzheimer, transtorno neurodegenerativo progressivo e que se manifesta pela deterioração cognitiva e da memória. Aém disso, compromete progressivamente atividades simples do dia a dia. Por esse motivo, ela não teve condições de frequentar as aulas presencialmente em 2022. Foi nessa hora que a idosa conheceu a professora Nely. A docente, contudo, também enfrentava, à época, um dilema de saúde na família, por causa da Covid-19.

“No ano passado, nesta data, eu estava voltando a trabalhar. A proposta que recebi era de uma senhora, de 77 anos à época, que tem Alzheimer e que estava com alguns fatores da doença avançados. Então ela teria o atendimento, as aulas, em casa. Eu vim para a casa dela fazer esse atendimento. A primeira coisa foi a entrevista com a família, na qual fui muito bem acolhida e sou muito grata por isso. Sou professora há 33 anos. No começo foi um desafio, mas ao mesmo tempo foi um presente que eu estava ganhando”, conta Nely.

Inspiração

Nely, que exerce a profissão há 33 anos, conta que o acolhimento da família de Dona Terezinha durante as aulas na casa da aluna foi fundamental para superar o momento difícil de saúde do esposo.

“Meu marido estava intubado com Covid-19. Foi um momento em que eu estava prestes a perder o meu esposo e eu havia ganhado um grande presente. Eu havia ganhado uma família, e a Dona Terezinha naquele momento representou para mim o esperançar de Paulo Freire. O esperançar de uma nova conquista, o esperançar de superação. Algumas vezes me ligavam da UTI [sobre o marido] e eu estava aqui com ela. Eu pedia licença para a família para poder atender o telefone porque meu marido estava em estado gravíssimo”, relata a professora.

Dona Terezinha, por sua vez, acabou sendo a inspiração para a professora. Dedicada, a aluna recebeu as aulas em casa com muita disposição e bom humor. Em entrevista à Sagres, ela fez questão de mostrar o caderno recheado de atividades. “Foi até fácil. Muita gente me ajudou, meus amigos aqui na escola, gostei muito. Ela ficou comigo todos os dias, agora ela está apegada aqui comigo. Não vou soltar ela mais, não, vai ficar aqui perto de mim agora até ela me formar”, conta, aos risos, Dona Terezinha.

Vivências

Dona Terezinha com atividade de música desenvolvida com a professora Nely (Foto: Arquivo pessoal)

Entre as atividades do dia a dia, leitura, notícias em jornais, tabuada, exercícios acompanhamento dos dias da semana na ‘folhinha’, jogos e até passeios, como o Circuito Pedagógico Cultural. Além disso, teve visita ao Museu de Bonecos Gigantes e ao Casarão dos Gonzaga. Este último é um edifício histórico, uma das primeiras residências de Caldas Novas.

“Eu trabalho com ela a parte de escrita, de leitura, trabalho também as vivências dela”, conta Nely. Quando chegamos ao Casarão dos Gonzaga ela foi falando as coisas que tinha na casa dela também, os objetos que ela identificava. O torrador de café, por exemplo, ela foi me contando o passo a passo da produção, desde o pé de café à colheita, o secar do café, até que chegasse ao nosso pó de café. Essa vivência, por exemplo, eu não tive, mas ela teve, e ela trouxe essa vivência para mim. Ela é o esperançar dessa geração, que precisa de dias melhores”, acrescenta a professora.

Reconhecimento

Na última semana, na terça-feira (27), Dona Terezinha colou grau, ao concluir o 5º ano do Ensino Fundamental. A solenidade foi realizada em um espaço de festas em Caldas Novas, na presença da família e de autoridades, como o prefeito Kleber Marra e a primeira-dama, Márcia Marra. “Achei muito bonito, não esperava por isso. Recebi, gostei muito”, diz Dona Terezinha sobre a homenagem e o reconhecimento pelos meses de estudos e dedicação à EJA.

Emocionada, porém, Nely Gonçalves conta que foi a escolhida pela aluna para subir ao palco e receber o diploma. “Dona Terezinha viu a filha [Luciana], a irmã, a neta [Priscylla], e viu que eu era a professora dela. Na hora, deu vontade de gritar de alegria. Tínhamos autoridades ali, o prefeito Kleber Marra, a primeira-dama dona Márcia Marra, e a Dona Terezinha olhou para mim e falou ‘ela é minha professora’. Então a família falou ‘é você que vai entrar com ela’. Eu tive o reconhecimento de uma aluna, da família. Eu falo que a Dona Terezinha é minha inspiração diária”, afirma.

Dona Terezinha colou grau na última terça-feira (27) (Foto: Secretaria de Comunicação/Prefeitura de Caldas Novas)

Marra destacou o trabalho realizado pela Secretaria Municipal de Educação na inclusão de alunos, tanto no EJA, quanto na rede pública convencional. “A história da Dona Terezinha é de superação e precisa ser celebrada. Trabalhamos para garantir a todos os nossos alunos atendimento isonômico e adequado para cada situação”, ressaltou o prefeito na solenidade.

Família

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 55 milhões de pessoas vivam com algum tipo de demência, sendo a mais comum justamente o Alzheimer. O transtorno atinge sete entre dez indivíduos nessa situação em todo o planeta. No Brasil, entretanto, dados do Ministério da Saúde indicam que em torno de 1,2 milhão de pessoas têm a doença. Ademais, 100 mil novos casos são diagnosticados por ano. Nely conta que o apoio da família é essencial para superar a doença.

“O cuidado que a família tem com ela é primordial. Hoje, se pesquisarmos, não tem literatura sobre o que estamos fazendo aqui com a Dona Terezinha. Eu já disse para ela ‘olha, a Nasa vai vir estudar a senhora’ (risos). O resultado que temos dela hoje é que o Alzheimer chegou e parou. Eu vejo que é um recomeço, acredito que muitos educadores, a partir da história da dona Terezinha, poderão ter também esse ponto de partida”, conta a professora.

Recuperação

Além disso, Nely conta que o marido finalmente se recuperou da Covid-19. A professora e coordenadora do projeto que ajuda pessoas como Dona Terezinha conta com orgulho que sua aluna mais presente foi, é e continuará sendo sua inspiração.

“Conseguimos superar a saúde do meu esposo. “Hoje ele está bem, embora com muitas sequelas. A dona Terezinha me surpreende a cada dia com a questão da aprendizagem. Eu gosto muito do esperançar. Na Bíblia, o livro de Jeremias diz que ‘quero trazer a esperança, quero trazer a memória, aquilo que me traz a esperança’. Então, aproveitando Freire e a palavra de Deus, esse esperançar da Dona Terezinha é isso. Eu não a olho como uma pessoa que tem Alzheimer, mas como uma pessoa que tem uma história, que tem uma memória educativa preservada, uma memória de vida preservada”, conclui.

Perguntada se continuaria os estudos, porém, Dona Terezinha não pensou duas vezes e fez questão de resgatar suas vivências na juventude, com a família e com a professora Nely. “Fui criada na roça. Andei muito no mato até vir para cá. Hoje sou abençoada porque tenho minha família e minha professora. Se Deus me ajudar, eu vou continuar”, finaliza. 

Dona Terezinha exibe o caderno repleto de atividades (Foto: Sagres Online)

Segundo a Secretaria Municipal de Educação de Caldas Novas, estudos revelam, com base nas análises da neurologista Elisa Resende e de sua equipe de pesquisadores, que a educação tende a ser uma das protagonistas no combate ao Alzheimer. Todas as evidências coletadas nas análises apontam-na como uma ferramenta bastante eficiente.

Segundo Resende, a educação parece expandir os horizontes quando se fala de demência e Alzheimer. Com ela, boa parte da qualidade de vida do paciente pode ser prolongada, e o impacto sobre seus familiares e outras pessoas próximas tende a ser menor.

Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) ODS 03 e 04 – Saúde e bem-estar e Educação de qualidade, respectivamente.

Leia mais

Brasil é segundo país em que pessoas passam mais tempo em frente às telas, revela pesquisa

Professor diferencia esporte de alta performance e exercícios regulares em busca de saúde

Computador para as crianças se divertirem ou fazerem trabalhos escolares