Dia 12 de dezembro de 2022. O Brasil inteiro assistiu a cenas de terror que ocorreram em vários estados. Pessoas de diferentes cidades deixaram seus afazeres do cotidiano para iniciar uma série de atos violentos, chamados de antidemocráticos, em reação a um fato político. A diplomação do presidente eleito este ano, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ocorrida às 14h do mesmo dia, foi o estopim. Veículos destruídos e incendiados foram apenas uma parte das agressões que assustaram e lesaram, de forma material, uma parte da população que não participou da destruição.
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Mas isso não é um fato isolado. Esse movimento já estava em fase de desenvolvimento desde o final das eleições, quando o resultado final das urnas foi divulgado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Dias após as votações do segundo turno, eleitores de todo o país se uniram e se acamparam na frente de quartéis do Exército Brasileiro, na tentativa de fazer com que o poder fosse dominado pelas forças armadas.
Nesse sentido, como podemos analisar a reação desses grupos, que geralmente atuam em bandos, para tentar “fazer valer” as suas vontades, mesmo que a maioria da população tenha escolhido o contrário? Para a psicóloga Anna Flávia Garcia, especialista em Neuropsicologia e Psicanálise, esses atos surgem a partir de um desejo destrutivo interno de cada cidadão. Sem condições de lidar com sentimentos mais agressivos, as pessoas podem, então, jogar essa frustração para o ambiente externo e, assim, iniciar os atos violentos.
“Quando falamos da violência, a gente pega isso como uma dor mental que está presente quando o insuportável afeta a autonomia do sujeito. […] O fato de uma pessoa não conseguir se livrar ou lidar com essa ameaça de autoaniquilamento, ela acaba dirigindo essa agressividade para o meio externo”, explica.
Questionada sobre o fato de que possivelmente esses grupos violentos não se sintam culpados e se protegem atrás do discurso de que estão “lutando pelo país”, a psicóloga ressalta que essa é uma prática comum do ser humano, o fato de “jogar a culpa para outro” e não se responsabilizar por seus atos.
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“Meu grupo acaba me motivando a um determinado tipo de comportamento justamente porque, além de eu me sentir “acolhido”, aquilo reforça a minha fantasia de que, de fato, o meu comportamento – que é uma forma destrutiva – é correto. Isso implica ainda mais na dificuldade de a gente ver como uma ameaça que vem a mim, mas a ameaça não vem de mim. Eu atribuo essa ameaça ao mundo externo. É o outro que proporciona essa ameaça, o outro que é o agressor, não eu, simplesmente porque bate de frente com aquelas crenças e idealizações que acredito serem corretas”, argumenta Anna Flávia.
Confira a entrevista na íntegra:
Como podemos analisar a reação de grupos que praticaram atos terroristas no dia 12 de dezembro em várias partes do país?
Anna Flávia: O aspecto da violência sempre esteve presente no nosso contexto, na questão sócio-histórica em si, mas que vem se tornando mais acentuada. Quando a gente fala desse aspecto da violência, a gente pega isso como uma dor mental que justamente está presente quando o insuportável afeta aquela autonomia de sujeito. Aqui a gente relembra sobre a pulsão de morte que Freud citou, que é uma parte destrutiva, essa parte mais agressiva do ser humano. Já a Melanie Klein chama esse contexto de esquizoparanóide, que seria uma forma mais selvagem do ser humano administrar sua própria destrutividade. É como ego primitivo em que, por exemplo, quando a pessoa está muito ansiosa ou angustiada, o fato de ela não conseguir se livrar ou lidar com essa ameaça de autoaniquilamento, ela acaba dirigindo essa agressividade para o meio externo. Para não sentir a culpa, é mais fácil eu pensar: ‘Eu não me vejo como a ameaça que vem de mim, mas a ameaça vem de terceiro’. Ou seja, eu não sou o agressor, o agressor é o próximo. Dentro disso, a gente vê que, se o ambiente de fato devolve aquela agressão para o sujeito, automaticamente estou reforçando essa fantasia esquizoparanóide, formando um vínculo naquele círculo vicioso. Seria aquele ditado que conhecemos: Olho por olho, dente por dente. Então, vemos as pessoas hoje com esse aspecto da violência voltadas para esse ponto porque é mais fácil eu conseguir uma retaliação desse processo quando a minha parte inimiga – porque eu separo em blocos aqueles que são meus amigos e inimigos – se aproxima para ter determinada retaliação, se torna mais fácil eu aguentar aquele processo, porque vou evitar o contato de me sentir culpado ou se recuperar aquilo que eu destruí. Eu busco uma justificativa do meu comportamento.
Por que a união com outras pessoas pode desencadear essa violência, mesmo que o fato tenha ocorrido longe das pessoas, às vezes em outra parte do país?
Anna Flávia: A verdade do outro não é a minha verdade. Então, a partir do momento que eu entendo isso, a gente tem uma tendência a ignorar aquele determinado aspecto. Se eu ignoro, automaticamente aquilo me causa um estresse porque vai de encontro às concepções, crenças e percepções daquilo que eu acredito. Com isso, meu grupo acaba me motivando a um determinado tipo de comportamento justamente porque, além de eu me sentir “acolhido”, aquilo reforça a minha fantasia de que, de fato, o meu comportamento – que é uma forma destrutiva – é correto. Isso implica ainda mais na questão da dificuldade de a gente se ver como uma ameaça que vem a mim, mas a ameaça não vem de mim. Eu atribuo essa ameaça ao mundo externo. É o outro que proporciona essa ameaça, o outro que é o agressor, não eu, simplesmente porque bate de frente com aquelas crenças e idealizações que acredito serem corretas. Se a gente pensar em crenças e idealizações, sabemos que são aspectos criados desde a infância.
Apesar de termos uma democracia jovem, não aconteceu na história do Brasil algo tão violento quanto os últimos atos. O que aconteceu com o cidadão para chegarmos nesse momento?
Anna Flávia: A gente vê grande avanço das coisas, das tecnologias, e isso faz com que o mundo nos obrigue a estar ali, ou você está junto ou você está excluído, ou você faz parte do grupo ou não faz parte. Uma melhor forma de compreendermos esse contexto seria tentar decifrar o que se pensa, o que significa e até mesmo como a sociedade representa a violência. Se analisarmos, a violência enquanto fenômeno sociocultural se reverte num senso comum, ou seja, em uma falsa percepção e naturalização dos fatos do cotidiano. Para além dessa concepção, a gente vê a necessidade de mudar as representações sociais para que a gente possa conseguir, de alguma forma, transformar as práticas e as concepções pessoais que o cidadão apresenta hoje a respeito da violência.
Como mudar as representações sociais?
Anna Flávia: As representações sociais são a concepção do que é aceitável e o que não é. Hoje, quando eu falo da violência colocada como um aspecto de percepção de neutralização, infelizmente vemos fatos violentos na mídia ou algo do tipo, como uma coisa que ‘simplesmente acontece’, mais uma estatística. A gente acaba criando uma frieza emocional em que a pessoa vê e acha que é comum acontecer todos os dias. Então, a mudança dessa representação é, de fato, enxergar o que a violência pode causar, o que é uma violência e não simplesmente tentar torná-la um senso comum ou neutralizada. Vemos ainda as práticas violentas e pessoas que trazem justificativas que, infelizmente, outros acabam concordando. “Ah, se eu fosse ele, também teria feito isso. Foi pela força da emoção”. Ou seja, a busca de justificativa para um comportamento que a gente sabe que existem formas de canalizar esse tipo de ato destrutivo para encontrar maneiras aceitáveis de lidar com determinado tipo de violência. Mas o que a gente costuma fazer na maioria das vezes é retribuir de forma externa a angústia ou ansiedade.
Como poderíamos canalizar essa violência ou essa energia autodestrutiva?
Anna Flávia: Uma forma de canalizar estresse, em primeiro lugar, é a terapia em si, que é um processo de autoconhecimento. A pessoa passar a se conhecer para saber lidar com os aspectos da projeção, o que é seu e o que é do outro, praticar a filtragem. Entre outras coisas estão os exercícios físicos, alimentação, as práticas do dia a dia. O estresse nós vamos sempre ter no dia a dia, mas o que importa de fato do resultado é como eu faço para lidar com determinada situação.
São indicações individuais para um problema coletivo
Anna Flávia: Por mais que às vezes possa parecer que todos estão em um mesmo plano, com os mesmos aspectos, é importante trabalhar de forma individualizada, porque o que me levou até ali não é o mesmo que levou um terceiro. Está certo que a gente pode estar com a mesma opinião para um resultado, mas antes desse resultado vem um comportamento. Esse comportamento se torna individualizado porque são crenças totalmente diferentes. A gente pode ter, às vezes, percepções iguais, mas mesmo assim não é o que faz todos levarem a um determinado tipo de comportamento. Por isso a importância do trabalho individual. É o ditado: Eu faço a minha parte e você faz a sua. Se usa o contrário, ou seja, você faz sua parte e aí eu faço a minha, a gente começa a jogar, novamente, essa responsabilidade para o outro. Por esse motivo é importante trabalhar de forma mais individualizada por mais que seja uma globalização das violências.
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