Foto: divulgação/internet

É preciso uma grande dose de coragem e entusiasmo para encarar a responsabilidade de filmar a biografia de uma das maiores bandas de todos os tempos. E desde que surgiram os primeiros rumores de que “Bohemian Rhapsody” (2018) iria acontecer, a dúvida e o ceticismo circularam em torno de uma questão crucial: quem interpretaria Freddie Mercury?

O então diretor Bryan Singer (da franquia X-Men, mas erigido sobre “Os Suspeitos”, de 1995) comprou a briga e após inúmeras especulações de que Sacha Baron Cohen viveria o vocalista, trouxe Rami Malek (da série “Mr. Robot”) para o protagonismo. Singer, posteriormente, foi substituído por Dexter Fletcher (de “Rocket Man”, ainda inédito).

Rami não fez feio. Não guarda absolutamente nenhuma semelhança física com Mercury – é mais baixo, mais franzino, cabeça maior, sobrancelhas mais grossas e marcantes – mas sua interpretação o legitima. E o diretor o ajuda já na sequência de abertura. Mas chegaremos lá.

O filme conta a trajetória de Freddie desde a adolescência, com conflitos comuns da fase (a busca por emprego, o reconhecimento, a formação da identidade e o encontro do amor), até o encontro com Brian May (Gwilym Lee, absolutamente idêntico ao guitarrista, parece que nasceu para ser May) e Roger Taylor (Ben Hardy, em semelhança também de impressionar), ainda membros da banda Smile.

rami malek bohemian rhapsodyRami Malek na pele de Mercury, ao vivo para milhões de pessoas no Live Aid (foto: divulgação/internet)

Vemos um Freddie empolgado, já vestindo sua usual arrogância simpática, disposto a provar ao mundo que já nasceu pronto para brilhar. E se encaixa perfeitamente – ainda que com desconfiança no começo – à fórmula em vigência que May e Taylor usavam nos palcos: um rock pungente, com apelo visual e uma certa dose de experimentalismo. A partir da entrada de Mercury no grupo de May e Taylor, com a mudança de nome para Queen e a entrada de John Deacon, o filme embala de vez. Os grandes hits estão lá, passagens engraçadas como o enfrentamento ao diretor da gravadora EMI (e, metaforicamente, a todo o sistema), ou o processo de concepção da canção-título. Trechos memoráveis, engraçados, e que nos fazem lembrar a figura que era Freddie. A reconstituição de figurinos, cenários, palcos e até do quarteto em si é primorosa.

O problema do filme é um só: roteiro, responsável por transformar uma pretensa cinebiografia em uma grande homenagem. O que acaba reduzindo bastante o potencial da obra.

E veja bem, não é que eu esteja tentando ser chato aqui, mas é que o Freddie Mercury é e continua sendo uma das maiores lendas do rock mundial. Todos já o amam! Ele já deixou sua marca no mundo, não há mais nada o que provar. Então se você julga o filme como perfeito somente porque saiu apaixonado (a) pelo Freddie, dançando ao som de “Fat Bottomed Girls” ou chorando por “Who wants to live forever”, vou te dizer uma coisa: você precisa conhecer o Queen de verdade! É necessária uma análise mais profunda para perceber que o fenômeno vai muito além do que está na tela, e essa janelinha que abriram – em que pese fantástica – tem uma porção de distorções.

A trajetória do Queen é fantástica, profunda, desafiadora e pra lá de polêmica. E extensa, claro! A adaptação dessa história para as telas exigiria, de qualquer forma, escolhas importantes sobre o que entra ou não nessa janela cinematográfica. Adaptações são assim mesmo, como o sapatinho de Cinderella. Você aperta pra tentar caber. A adaptação de roteiro ideal (e quase utópica) é aquela em que o conteúdo não precisa ser cortado, e o autor pode se dedicar inteiramente à forma e ao estilo. Mas quando necessário adaptar também o conteúdo, é imprescindível que não se perca a forma e o estilo de vista. Adaptações devem trabalhar em prol do resultado final, de um objetivo maior. E é aqui que o filme falha tremendamente, porque comprometido com uma visão quase infantil da vida do Queen – majoritariamente de Freddie.

df 07660 bDeacon, Taylor, Mercury e May: o Queen desafia a indústria. (foto: divulgação/internet)

Vamos voltar à sequência de abertura – belíssima, mas óbvia ao extremo quanto a suas intenções. Mercury é marcante. Um sex simbol. E as feições excêntricas de Rami Malek (quase um Buster Keaton) poderiam distanciar o espectador dessa imersão. Então Singer, além de contar ao público que o cantor será o centro das atenções quase que totalmente, também preocupa-se inicialmente em reforçar outras características do personagem Freddie Mercury – microfone, roupas, postura corporal, cabelo, bigode – num momento de preparação para entrar no palco do Live Aid, um dos maiores concertos da história do rock, em Londres. Em quase 5 minutos, vemos apenas recortes, mas nunca o rosto de Malek como Freddie. Singer quase nos implora: por favor, acredite, esse é o Freddie Mercury!

E não precisava! Porque Malek – no início caricato, com dentes salientes acima do normal – constrói seu Freddie de forma competente. E no final, convence!

A direção até o segundo terço do filme, mais comprometida com um lado cômico do roteiro, traz um frescor inesperado (pelo tipo de obra, e pelo estilo do diretor). A cena da gravação da canção “Bohemian Rhapsody” é, sem dúvida nenhuma, o ponto alto (a fusão de imagens entre Taylor cantando “Galileo” e o galo pronto para anunciar o raiar do dia é simplesmente espetacular – em forma e sentido).

Mas no último terço, se torna quase burocrática, cansada, ansiosa para que o grande trunfo do filme chegue: a reconstituição quase integral do que foi o show do Live Aid.

O curioso é que o ponto forte do filme – o Live Aid – é justamente seu calcanhar de Aquiles. Porque o roteirista Anthony McCarten quis transformar o show (que, realmente, foi um baita de um show transmitido ao vivo para milhões de pessoas em todo o globo) no grande ponto de convergência da vida de Freddie e do Queen. Quis que a razão de existir de toda a história fosse o evento. E, sabemos todos, que passou longe disso. Dai vem os primeiros erros de adaptação: cronologia e fidelidade.

No filme, o Queen vem ao Brasil pela primeira vez em 1981, tocando no Rio para milhões de pessoas (a maior audiência que já tiveram). Ver toda aquela gente entoando “Love of my life”, inclusive, teria inspirado a banda a compor “We Will Rock You”. Nunca aconteceu. Em 1981, a banda veio a São Paulo, e a passagem mencionada ocorreu no Rock In Rio de 1985. “Rock you” é de 1977.

Outra passagem mostra Freddie absolutamente conformado ao descobrir que era portador do vírus HIV, poucos dias antes do Live Aid. Isso, inclusive, o motiva a participar do concerto. Na vida real, Freddie descobriu sua doença dois anos após o festival, e tinha uma absoluta rejeição pelo assunto. Nunca comentou com a banda, exceto May, em pouquíssimas ocasiões. O peso da doença é ignorado na película. Na vida real, Mercury chegou a perder um dos pés no tratamento.

Da mesma forma, Jim Hutton, o amor da sua vida. No filme, Mercury o teria conhecido como garçom, numa festa em sua casa, e engataram um namoro meio às pressas no dia do Live Aid. Na realidade, Hutton e Mercury se encontram uma vez em 1985, mas só iniciaram o namoro em 86, quando voltaram a se esbarrar acidentalmente. Como deixar um personagem da mais alta importância tão à margem dos acontecimentos?

Outro ponto: No processo de criação da canção Under Pressure, no filme, não há sequer menção a David Bowie. Nem o nome. Na vida real, Deacon surgiu com o riff icônico numa jam session com Bowie, que escreveu a letra inteira sozinho. É como comentar Romeu e Julieta sem mencionar o nome de Shakespeare – um completo absurdo. Aliás, Freddie era uma personalidade extremamente sociável (ao mesmo tempo que egocêntrica), e cultivou amizades como Carrie Fischer, Lady Diana, Elton John, além do próprio Bowie. Inúmeros nomes, que não foram citados em momento algum, transformando o Queen numa espécie de ilha artística na tela.

Você poderia dizer: mas adaptação é assim mesmo! O problema é que qualquer adaptação deve trabalhar em prol de um objetivo, roteiristicamente falando. E as escolhas de adaptação da produção pecam justamente por eleger o Live Aid como ponto de convergência, como transição para o terceiro ato. A partir daí, forçaram escolhas em prol disso, transformando um belo filme em novela.

Perceba [E AQUI VAI UMA DOSE DE SPOILER, JÁ QUE VIRA FICÇÃO]: não existe ponta solta, todos terminam felizes, tudo pelo Live Aid. Mercury se reconcilia com a banda, com a família, com a ex-amante Mary Austin (e até com o novo namorado de Mary). Está de bem com a vida (mesmo tendo descoberto a AIDS). Acabou de ganhar um novo namorado (e amor da sua vida). Não existe tensão narrativa. Está tudo resolvido. Como se fosse possível numa histórica como a do Queen. As escolhas de adaptação transformam a história em ficção. [FIM DO SPOILER]

181101 fallon bohemian rhapsody tease io4ijvApesar da falta de semelhança física, Malek convence na performance. (foto: divulgação/internet)

Brian May e Roger Taylor, guitarrista e baterista respectivamente, membros oficiais do Queen, foram consultores musicais do filme. E o que muita gente menciona como fator de legitimação da história é mais um indício de sua transformação em homenagem, muito mais do que em biografia: May e Taylor foram consultados quanto a aspectos musicais, não propriamente de roteiro. No geral, deram a autorização para que o filme acontecesse – e, obviamente, sendo próximos a Freddie, testemunhas de sua preocupação com a privacidade e a rejeição à doença, preferiram o clima leve e descontraído da obra. Em resumo: é um filme dito chapa branca. Uma foto parcial.

O fato é que “Bohemian” é mais uma bela homenagem a Freddie – um dos maiores e mais talentosos artistas da história do rock – do que propriamente uma cinebiografia da banda. Mercury sobra em cena. Mas o Queen que desafiou costumes, levantou discussões, transformou gerações e até hoje incomoda muita gente fez falta na maior parte do filme. Em que pese trazer a fãs antigos a oportunidade de redescobrir a banda, e angariar uma porção de novos admiradores, o filme acaba restringindo seu potencial ao dar menos importância aos outros músicos (meu amigo, quando você descobre a musicalidade camuflada na elegância de Brian May… sabia que ele desenhou E construiu a guitarra “Red Special” que costuma usar em toda a carreira?) e romancear demais sobre fatos e motivos. A homenagem é mais do que justa, claro. Mas ainda há espaço para uma cinebiografia.